Há algum tempo
escrevi sobre inocência uma promessa que é dívida e sei muito bem que onde
predomina o dogma da confissão dos pecados a culpa é imperativa, pois bem, como
toda paulistana, frequento padaria, agora bem menos porque além de ofertas
duvidosas e abusivas, acessórias da panificação digna de respeito, é local de
distintas confusões desde uma fila que nem sempre é possível compreender devido
a convenções de oportunidade até descasos e irritadiços equívocos acerca do
pedido. Considero um absurdo tomar um pingado claro quando pedi escuro e frio
quando o costume é quente, mas a lotação e o esforço sobre humano dos
empregados não autoriza maiores reclamações e assim, a solução emergente da
padoca vira um martírio de insatisfação, principalmente para alguém que deixou
a fome chegar e é obrigada a engolir a gororoba do jeito que vier.
Outra coisa
interessante são os coleguismos casuais de qualquer ambiente comercial do tipo
padaria, onde se cede um lugar quando todas as mesas e banquinhos estão
ocupados e de onde surgem momentâneas atenções ou gentilezas que não custam
mais, mas que às vezes são interpretadas como profundos laços eternos.
Então, há
alguns anos, cedi lugar na cadeira remanescente da mesa que ocupava a um senhor
de idade avançada que me contou que acabara de enviuvar e que tinha alguns
problemas articulares e tentava fazer exercícios frequentando hidroginástica.
Ouvi e repliquei da importância dos exercícios para manter melhoras da condição
física etc., além de receber com carinho uma poesia feita na hora com as letras
do meu nome que o referido senhor indagou para tanto.
Depois disso o
respectivo senhor com presença coincidente nas minhas idas de fim de semana ao
café da manhã na padaria, passou a dirigir-se sempre e diretamente à mesa que
eu ocupava, trazendo consigo um radinho de pilha impossível de ouvir porque só
produzia ruídos e o qual era displicentemente acomodado quase em frente da
minha constrangida pessoa que entre outras coisas passou a ter de responder
indagações sugestivas de uma possibilidade romântica.
Até um dia em
que, indagada pelo velhinho incômodo se podia ele com o seu radinho me
acompanhar ao café da manhã, respondi que NÃO. E aí foi a vez de todo mundo
ficar constrangido com a taba dada no tiozinho, coitado! Foi se sentar cabisbaixo em outra das várias
mesas desocupadas como se tivesse sido vítima de um instrumento perfuro
contundente. Não rezei porque não creio,
mas senti a condenação coletiva pesando sobre meus indefesos ombros.
Funcionários de
padaria passam muitos anos na padaria, mesmo que seja um trabalho do cão. E
chegou o dia de conhecer a assim denominada lei do retorno ou carma, pois
aparentemente alguém das antigas foi promovido a chapeiro e encontrou a justa
superior posição de exercer justiça heroica e brava contra a malandragem mediana
dos frequentadores do serviço de emergência acessório da “panificina”.
Nos últimos
tempos me tornei mais adepta do suco de açaí, e recebia a gentileza de tê-lo
preparado de forma um pouco mais densa por algumas das funcionárias a meu
pedido, gente de contato de quase uma década. Mais que o suco o carinho me
fazia contente, entretanto, não havia código para a cobrança do “plus” de uma
colherinha a mais da polpa que deixava o suco mais agradável ao meu paladar.
O chapeiro
enxergou a luz quando foi fixado então um novo valor (o dobro) para o suco
assim incrementado com uma colherzinha a mais da polpa de açaí, e quando da
atenção ao meu pedido includente de um sanduíche com pouca maionese, gritou
pela renovação do código a ser marcado enquanto jogou uma colher bem cheia do
molho usual no meu lanchinho substitutivo do almoço. O suco veio ralo e o
sanduíche foi uma das coisas mais enjoativas que já comi a contragosto,
enquanto os funcionários que sempre tinham me tratado com presteza baixavam o
olhar sem graça, enquanto o chapeiro bufava diante de seu instrumental.
Reclamei com o
gerente à altura do comando permitente do mau trato, a quem informei jamais
voltar a consumir daquele estabelecimento.
Fiz uma poesia:
O CHAPEIRO CHAPADO
Chapado o chapeiro
Empunha e raspa
dejetos
Queimados de sua
orgia particular de suores secretos
Respira o calor de
sua raiva constante
E muda seu mundo
desgraçado em maionese
Justa viagem para seu
tolo viver
Mensurado em
colheradas de desequilibrados desastres
Do aprazível desgosto
de quem
Esmaga atitudes do
impagável no território marcado da chapa
De um lado a outro
Escorregando motivos
de elevação
Incumbência de alisar
o erigido dos idiotas inanidos de sua maioral pobreza
A virtude do nível
Nivelada ao hábil
espatular
Porque a chapa é do
chapeiro
E seu chapa é quem te
compra
Manifesta
minha beleza interior e confessa minha visão da culpa a mim impingida peço vênia
para a transcrição do mencionado como consciência dupla por Harold Bloom ao
referir-se a Emerson e W.E.B. de Bois:
“Uma chave, uma solução para os mistérios da
condição humana, uma solução para os velhos nós do destino, da liberdade e da
previsão existe: a proposição da consciência dupla. Um homem deve cavalgar,
alternativamente, os alazões de sua natureza privada e pública, assim como os
cavaleiros, no circo, lançam-se, agilmente, de um cavalo a outro, ou apoiam um
pé sobre o dorso de um cavalo e outro sobre o dorso de outro. Portanto, quando
um homem é vítima do destino, sofre de ciática nos quadris e cãibra na mente;
tem o pé disforme e disforme é o seu intelecto; fisionomia azeda, e
temperamento egoísta; um caminhar manco, e afetação vaidosa; ou é moído até
virar pó, pelos vícios da raça; será reanimado pela relação que tiver com o
Universo, que é beneficiada pela sua ruína. Deixando o demônio que sofre, ele
deve ficar do lado da Divindade, que obtém um benefício universal por meio da
sua dor.”
Assim como
Harold Bloom não me sinto propensa a esta forma de compensação. O chapeiro foi
demitido da padaria por razões que desconheço e agora trabalha na cantina sem
janelas da academia de ginástica por mim frequentada, onde sempre me
cumprimenta com um sorriso que não sei definir, mas que retribuo...de coração!
Meu tempo
continua, mas eu não podia deixar de desejar um Feliz Natal e próspero Ano Novo!
Jussara Paschoini
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