quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

CONFISSÕES DE FIM DE ANO




Há algum tempo escrevi sobre inocência uma promessa que é dívida e sei muito bem que onde predomina o dogma da confissão dos pecados a culpa é imperativa, pois bem, como toda paulistana, frequento padaria, agora bem menos porque além de ofertas duvidosas e abusivas, acessórias da panificação digna de respeito, é local de distintas confusões desde uma fila que nem sempre é possível compreender devido a convenções de oportunidade até descasos e irritadiços equívocos acerca do pedido. Considero um absurdo tomar um pingado claro quando pedi escuro e frio quando o costume é quente, mas a lotação e o esforço sobre humano dos empregados não autoriza maiores reclamações e assim, a solução emergente da padoca vira um martírio de insatisfação, principalmente para alguém que deixou a fome chegar e é obrigada a engolir a gororoba do jeito que vier.

Outra coisa interessante são os coleguismos casuais de qualquer ambiente comercial do tipo padaria, onde se cede um lugar quando todas as mesas e banquinhos estão ocupados e de onde surgem momentâneas atenções ou gentilezas que não custam mais, mas que às vezes são interpretadas como profundos laços eternos.

Então, há alguns anos, cedi lugar na cadeira remanescente da mesa que ocupava a um senhor de idade avançada que me contou que acabara de enviuvar e que tinha alguns problemas articulares e tentava fazer exercícios frequentando hidroginástica. Ouvi e repliquei da importância dos exercícios para manter melhoras da condição física etc., além de receber com carinho uma poesia feita na hora com as letras do meu nome que o referido senhor indagou para tanto.


Depois disso o respectivo senhor com presença coincidente nas minhas idas de fim de semana ao café da manhã na padaria, passou a dirigir-se sempre e diretamente à mesa que eu ocupava, trazendo consigo um radinho de pilha impossível de ouvir porque só produzia ruídos e o qual era displicentemente acomodado quase em frente da minha constrangida pessoa que entre outras coisas passou a ter de responder indagações sugestivas de uma possibilidade romântica.

Até um dia em que, indagada pelo velhinho incômodo se podia ele com o seu radinho me acompanhar ao café da manhã, respondi que NÃO. E aí foi a vez de todo mundo ficar constrangido com a taba dada no tiozinho, coitado!  Foi se sentar cabisbaixo em outra das várias mesas desocupadas como se tivesse sido vítima de um instrumento perfuro contundente.  Não rezei porque não creio, mas senti a condenação coletiva pesando sobre meus indefesos ombros.


Funcionários de padaria passam muitos anos na padaria, mesmo que seja um trabalho do cão. E chegou o dia de conhecer a assim denominada lei do retorno ou carma, pois aparentemente alguém das antigas foi promovido a chapeiro e encontrou a justa superior posição de exercer justiça heroica e brava contra a malandragem mediana dos frequentadores do serviço de emergência acessório da “panificina”.

Nos últimos tempos me tornei mais adepta do suco de açaí, e recebia a gentileza de tê-lo preparado de forma um pouco mais densa por algumas das funcionárias a meu pedido, gente de contato de quase uma década. Mais que o suco o carinho me fazia contente, entretanto, não havia código para a cobrança do “plus” de uma colherinha a mais da polpa que deixava o suco mais agradável ao meu paladar.

O chapeiro enxergou a luz quando foi fixado então um novo valor (o dobro) para o suco assim incrementado com uma colherzinha a mais da polpa de açaí, e quando da atenção ao meu pedido includente de um sanduíche com pouca maionese, gritou pela renovação do código a ser marcado enquanto jogou uma colher bem cheia do molho usual no meu lanchinho substitutivo do almoço. O suco veio ralo e o sanduíche foi uma das coisas mais enjoativas que já comi a contragosto, enquanto os funcionários que sempre tinham me tratado com presteza baixavam o olhar sem graça, enquanto o chapeiro bufava diante de seu instrumental.

Reclamei com o gerente à altura do comando permitente do mau trato, a quem informei jamais voltar a consumir daquele estabelecimento.

Fiz uma poesia:


O CHAPEIRO CHAPADO

Chapado o chapeiro
Empunha e raspa dejetos
Queimados de sua orgia particular de suores secretos
Respira o calor de sua raiva constante
E muda seu mundo desgraçado em maionese
Justa viagem para seu tolo viver
Mensurado em colheradas de desequilibrados desastres
Do aprazível desgosto de quem
Esmaga atitudes do impagável no território marcado da chapa
De um lado a outro
Escorregando motivos de elevação
Incumbência de alisar o erigido dos idiotas inanidos de sua maioral pobreza
A virtude do nível
Nivelada ao hábil espatular
Porque a chapa é do chapeiro
E seu chapa é quem te compra


Manifesta minha beleza interior e confessa minha visão da culpa a mim impingida peço vênia para a transcrição do mencionado como consciência dupla por Harold Bloom ao referir-se a Emerson e W.E.B. de Bois:


“Uma chave, uma solução para os mistérios da condição humana, uma solução para os velhos nós do destino, da liberdade e da previsão existe: a proposição da consciência dupla. Um homem deve cavalgar, alternativamente, os alazões de sua natureza privada e pública, assim como os cavaleiros, no circo, lançam-se, agilmente, de um cavalo a outro, ou apoiam um pé sobre o dorso de um cavalo e outro sobre o dorso de outro. Portanto, quando um homem é vítima do destino, sofre de ciática nos quadris e cãibra na mente; tem o pé disforme e disforme é o seu intelecto; fisionomia azeda, e temperamento egoísta; um caminhar manco, e afetação vaidosa; ou é moído até virar pó, pelos vícios da raça; será reanimado pela relação que tiver com o Universo, que é beneficiada pela sua ruína. Deixando o demônio que sofre, ele deve ficar do lado da Divindade, que obtém um benefício universal por meio da sua dor.”


Assim como Harold Bloom não me sinto propensa a esta forma de compensação. O chapeiro foi demitido da padaria por razões que desconheço e agora trabalha na cantina sem janelas da academia de ginástica por mim frequentada, onde sempre me cumprimenta com um sorriso que não sei definir, mas que retribuo...de coração!


Meu tempo continua, mas eu não podia deixar de desejar um Feliz Natal e próspero Ano Novo!


Jussara Paschoini

   




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