sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Homenagem a Francisco de Mello Franco





















     Dentro do que se pode compreender como fundamental na análise de qualquer fato cientificamente relevante certamente está a história e o que ela nos conta através de seres humanos engajados a construí-la com seus atos e por que não dizer, sacrifícios?

     Assim é que homenagear o médico nascido na cidade de Paracatu em Minas Gerais, com o nome de Francisco de Mello Franco (1757 a 1822) de notável atuação no transcurso do século XVIII, nos dias atuais, plenos e práticos duzentos anos depois, em vésperas das comemorações de fim de ano, se afigura um memorial bastante apropriado.

     Eis que o ilustre estudioso partiu das terras brasileiras onde nasceu, para em 1777 iniciar estudos na Universidade de Coimbra em Portugal, onde se matriculara para o curso de filosofia natural e medicina.

     A Universidade de Coimbra, àquela época, desfrutava de certa liberdade científica paradoxalmente obtida à custa do despotismo esclarecido do Marquês de Pombal (1699 a 1777), considerado um dos maiores estadistas portugueses não obstante sua reconhecida condição de déspota e que afastara dos domínios jesuíticos o alcance das ciências, ampliando-o à valorização dos progressos das filosofias físicas e mecanicistas, inclusive e principalmente nos estudos médicos.

     A era pombalina em Portugal foi permeada pela moderna concepção crítica à cultura livresca apontando-se a ideia de uma medicina empírico-racional muitíssimo conveniente a superar o misticismo religioso característico das atividades de cura à época.

     No entanto, foi no contexto ululante do que a história lusitana registra como “A Viradeira” ou revide drástico da igreja à era de Pombal, que o jovem Francisco de Mello Franco chegou para iniciar seus estudos de medicina na Universidade de Coimbra em 1777, onde, desde logo, foi preso pelo Santo Ofício até o ano de 1781, acusado de ser herege e naturalista além de dogmático e reverso ao matrimônio...

     Somente após cinco anos, em 1782 retomou seus estudos e formou-se em 1785, quando apesar das pressões religiosas o ensino médico em Portugal já se engajava em experimentalismo e prática, adotando, por exemplo, a dissecação de cadáveres para conhecimento do corpo humano.

     Era mantida a noção hipocrática do equilíbrio dos humores (líquidos) corpóreos na manutenção da saúde, porém, a renovação do saber médico passou a traduzi-la em linguagem mecânica e hidrostática, numa concepção analógica entre o corpo e as máquinas e engenhocas evidenciadas no período iluminista e focalizadas pelo Marquês de Pombal ao tentar introduzir amplamente em Portugal tal visão mecanicista.

     A visão idealizada pelo marquês, todavia, jamais pôde substituir a reiterada arte da navegação junto aos ânimos nacionais.


     Foi em 1794 que o médico Mello Franco publicou anonimamente uma obra denominada “Medicina Teológica” onde diplomaticamente admitia o vínculo entre teologia e medicina para transformá-lo numa forma de moralização tanto da medicina quanto das próprias noções religiosas correntes, buscando, assim, separar os campos de atuação de ambas.

     A contrariedade eclesiástica notável contra a obra refletiu o conteúdo insurgente da mesma ao buscar afastar a intervenção religiosa da medicina, na medida em que era adversa à cura por milagres, repudiando a prescrição médica de água benta, cultos, promessas, exorcismos etc., bastante praticada à época por grande parte dos que se atribuíam a condição de médicos.

     A tônica desta insurgência moral, entre outras coisas, considerava o amor como patologia, não se referindo apenas à paixão ou à luxúria que se pudessem fazer includentes, mas a todo e qualquer amor, até mesmo o divino, ou seja, o interesse e demasiada dedicação a qualquer que fosse o objeto, era para o médico uma doença capaz de perverter os fluídos principais do corpo por decomposição das fibras nervosas.

     O amor patológico de Mello Franco substituía a noção de pecado pela noção de doença e ofertava a medicina como solução, trocava os rigorosos açoites religiosos pela prescrição de antiafrodisíacos como a sangria, banhos frios, purgantes, anti-sépticos e bebidas refrigerantes.

     Nesta obra que, de certo modo, até hoje, pode ser tida como revolucionária, se encontra assinalada a condução do amor ao espaço do corpo e ao olhar dos médicos numa característica predominante do discurso higienista, do domínio médico prescritivo moralista e normatizador  da medicina voltada para a família e à educação do corpo.

     O discurso médico era necessariamente um discurso moral e assumia um papel pedagógico visando garantir a saúde da população sob a égide da regeneração do corpo contra a decadência.

     Francisco de Mello Franco condenava o sacrifício de adolescentes obrigadas a contrair matrimônio com senhores acima de 60 anos de idade ou bem mais, além de considerar o casamento das jovens impróprio pela falta de desenvolvimento orgânico para gestação, defendia o aleitamento materno e a ação transformadora dos exercícios físicos na formação das crianças.

     Muito antes de Pasteur, Mello Franco já recomendava a fervura da água para prevenção de doenças e ainda que o fizesse com fundamento na então corrente, teoria dos miasmas, já era engajado na conferência de pesquisas para validar o uso de anti-sépticos combatentes da propagação dos compreendidos e pestilentos causadores aéreos das doenças (os miasmas).

     Em 1817 Mello Franco voltou para o Brasil como médico particular da Princesa Leopoldina e ao término de seus dias foi vítima de intrigas palacianas que fizeram com que D. João VI o proibisse de entrar na corte por crer que o médico intencionava destituí-lo do poder.


     Interessante uma frase do doutor, na obra intitulada “Elementos de Higiene“:


“Lembremo-nos que no Brasil principalmente nos portos do mar, é de necessidade introduzir todas as qualidades de exercícios varonis, com os quais aqueles habitantes frouxos e valetudinários já pelo clima, e já por hábito de indolência se fizessem vigorosos desde a sua mocidade.”


     O ilustre Dr. Mello Franco era ele mesmo vítima da doença que apontava, por ser, evidentemente, por demais afeito tanto a sua ciência quanto à moral que corajosamente defendia e pela qual sofreu muitas vezes árduas conseqüências.

     Por essas e outras é que o pleno século XXI não pode deixar de resguardar a ciência médica de qualquer intervenção política ou religiosa avessa ao ainda muitíssimo importante relacionamento do médico com a sociedade e seus indivíduos, considerando mesmo as novas exigências da vida e os dilemas da modernidade, como as pesquisas de célula tronco, o controle de natalidade e escolhas decorrentes da concepção indesejada em termos de franca e necessária evolução, inclusive normativa relacionada.

Homenageado, seja então, Francisco de Mello Franco.

Feliz Natal !


Bibliografia:
Jean Luiz Neves Abreu: “A Educação Física e Moral dos Corpos e a medicina luso-brasileira em fins do século XVIII” – Estudos Ibero Americanos, PUCRS, v.XXXII, n.2, p., 65-84, dezembro 2.006.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

OS ESPONSAIS

 
 
 
A sociedade politicamente organizada, fundada na constância dos laços familiares e, portanto do casamento, aí se compreenda atualmente a união societária conjugal formal ou informal, reverbera desde muito uma situação que de antemão deve ser considerada em sua característica precedência, os esponsais, ou seja, a situação juridicamente relevante de promessa de união estável e ou constituição familiar, a produzir direitos e deveres entre pretendentes.
É corrente a doutrina e jurisprudência no sentido de que a promessa de casamento possa conduzir a indenização de danos materiais e morais diante do que se classifica como ruptura injustificada do compromisso de constituição da união societária conjugal.
As justificativas capazes de legitimar a ruptura dos esponsais podem ser do ponto de vista prático, remetidas à causa geral de anulação de qualquer ato jurídico por vício de vontade, ou seja, mediante comprovação de que a assunção do esponsal ocorreu na ignorância de fatos cujo impacto é suficiente à reação de arrependimento do compromissado, justificando a ruptura.
A doutrina aponta que tanto o compromisso quanto a ruptura devem ser personalíssimos do pretendente, excluindo a apreciação da responsabilidade em hipóteses de manifestação de vontade correlata de terceiros, mesmo que com vínculo de parentesco, por exemplo, os pais. 
A ruína econômica, a doença grave, a infidelidade, mudança de credo religioso, injuria grave, constituem justa causa para a ruptura por parte do compromissado a união societária conjugal.
Contudo, gera contradição observar que o possível e natural desafeto e ou desinteresse entre duas pessoas, ainda que reconhecido por manifestação de apenas uma delas, não seja suficiente para que ambas deixem licitamente de realizar uma união societária conjugal, quando esta, para a hipótese, consistiria em um erro muito maior e na produção de danos e responsabilidades muito mais graves...
Exclua-se do observado o que comprovadamente for prejuízo material decorrente direto da expectativa de união conjugal, qual seja, o oneroso dispêndio ainda que voluntário para realização de eventos comemorativos da união, a assunção de dívidas e aquisição de bens destinados a comportar a união conjugal, naquilo que particularmente couber a quem manteve a intenção objeto de ruptura pelo outro pretendente.
Exclua-se também a exposição eventualmente vexatória decorrente de uma ruptura de intenções postergada e posterior à exposição e convite público para eventos de celebração da união conjugal, sem dúvida, producente de dano moral indenizável de modo proporcional ao grau de humilhação daquele que manteve a intenção publicamente declarada.
Eis que, ponderado o que é compreensível como exclusão, o expresso ou óbvio desafeto entre duas pessoas, ainda que manifestado apenas por uma delas, é lícito e deve produzir o direito líquido e certo a não efetivação da união conjugal, o que significa dizer que não deve pesar sobre nenhuma pessoa, como onerável, o dever de conviver e constituir família com quem quer que seja, homem ou mulher, quando não subsistir vínculo afetivo ou interesse para tanto.

Bibliografia:

Alencar Frederico- A responsabilidade civil pelo rompimento de noivado – Âmbito Jurídico.com.br

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Consciência Jurídica na Medicina


A medicina, principalmente no que tangenciam os estudos e aplicativos acerca da dor, registra, por razões práticas e concernentes ao típico interesse dessa ciência, certos níveis de inconsciência, sejam eles decorrentes da administração de drogas específicas ou de condições neurológicas variadas.

Muito dificilmente a área médica abordará um profundo nível de consciência porque a evolução do estado de inconsciência é o expediente importante na observação e tratamento de um paciente com manifestações patológicas ou importantes neste sentido.

Cientificamente falando, na medicina considera-se a profundidade da inconsciência relacionada ao ser humano um acontecimento muito mais notável que a consciência em si, interessante para a ciência filosófica.

Na visão médica, é então permitido focalizar, por assim dizer, uma elementar diferença entre consciência e inconsciência, qual seja a possibilidade de abordagem gradual apenas da inconsciência.

O máximo grau da inconsciência coincide com a morte, mas com o que coincidiria o máximo grau da consciência?

O que temos é uma resposta médica e uma dúvida filosófica, respectivamente e com sentidos opostos.

Jean Paul Satre e o existencialismo oferecem visão muito pertinente ao confronto mediante a contradição dialética “presença-a-si na distância-a-si” (uma presença que não pode dar-se sem que ao mesmo tempo se dêem todas as coisas), o que consiste em existir substancialmente como ser relacional em estado de percepção.

Nesta dialética observa-se o seguinte:

O ser é essencialmente indefinido por existir em um mundo de relações onde jamais encontrará a possibilidade de total ou absoluta identificação de si mesmo.

A essencial falta de identidade traduz o impulso primordial do ser para a consciência que o conecta com o mundo, fixando no passado o conteúdo histórico desse ser liberto para a criação na intrínseca indefinição do presente (não ser o que é e ser o que não é numa unidade de perpétua implicação mútua).

A totalidade inacabada tida assim como patente do presente compromete o ser que é sem poder ser, ao futuro, pela constituição de valores em transcendentalidade rumo à ação provida de sentido objetivo e ao mesmo tempo subjetivo. O homem é fundamentalmente estruturado para a transcendência de si mesmo e do mundo em que existe.


A consciência representa esta estrutura ao passo que a liberdade e a coragem conduzem a plenitude do que Jean Paul Satre define como espírito.


Tomada a consciência como estrutura transcendental do indivíduo, resta feita uma constatação de cunho respectivamente potencial, latente e dependente da ação, ou melhor, da relação, e o que existe como potencial, sem manifestação, não pode ser graduado, pois é desprovido de sentido.

Daí o fato de a inconsciência como manifestação oposta deste potencial, ser passível de graduação do nível mínimo ao nível máximo, por exemplo, do sono leve à morte.


A inconsciência não é, então, o oposto da consciência, mas uma ação ou relação negativa desta no indivíduo consciente sem poder ser a própria consciência.


Cabe lembrar que fisicamente precisamos dormir e inexoravelmente vamos morrer, a inconsciência é necessária à vida, a consciência, nem tanto...

A consciência não serve a nada, senão a si mesma, a finalidade é do consciente, no mundo de suas relações, que incluem, biologicamente, como já se notou, a necessidade de inconsciência e a certeza da morte.

Nesta lúdica inspirada no existencialismo é inevitável prosseguir e tangenciar a concepção jurídica da consciência, no que lha cabe e que não é a inconsciência necessária e fatal ao consciente, mas a sua forma de se relacionar, apesar desta.

O direito, dentre os muitos sentidos do consciente rumo à transcendência (de si e do mundo) é talvez o que mais se aproxima da consciência, na medida em que é manifesto da moral e da escolha historicamente vivida no mundo das relações, com o diferencial do peso social, ou seja, trata-se da relação do consciente com regras de convívio para as quais a oposição não se perde simplesmente nos graus de inconsciência, mas se torna passível de conflito.

Em matéria de direito a inconsciência é graduada principalmente pela alienação.

É no direito que o consciente encontrará ou não a transcendência capaz de legitimá-lo ou puni-lo, especificamente no que concerne ao seu modo de se relacionar, conforme ou não a vigência de regras da sociedade politicamente organizada em que viver.

A relação do consciente com o direito é muito mais do que uma relação por regras e para regras, é uma relação entre valores de transcendência individual e valores de transcendência coletiva, um prescinde da consciência o outro prescinde da organização política de uma sociedade.

A organização política de uma sociedade é fruto de uma escolha ideológica fomentada na fé coletiva e mantida pelo poder constituído, através do direito.

A contradição do consciente com o direito é princípio evolutivo da sociedade enquanto que a transgressão é possível reflexo da ilegitimidade tanto do consciente transgressor quanto do próprio direito transgredido.

Voltando a Satre e à liberdade conducente à plenitude do espírito eis que a legitimidade do direito nela reside posto que, fundamental à transcendência do homem, é também fundamental à transcendência da sociedade.


E ainda, retomando a também fundamental organização política oriunda da escolha ideológica é de se perceber que sem sentido e sem valor, nenhuma escolha é válida e sem fé, sequer existe.


Assim, o direito só existe e se mantém legitimamente sobreposto ao poder que o valha, sentido contrário é usurpação e violência retrocessa.

Isso visto como devida e focalizada presença, é possível então caminhar para o variado terreno das relações individuais onde conscientes transcendem entre si ou não para pactuar ou não suas particularidades, partilhando sentidos comuns ou opostos.


Pressupondo, pois a sociedade civilizada é possível divisar intrínsecas as relações de necessidade e as relações de interesse, as primeiras voltadas aos aspectos básicos da sobrevivência e aos vínculos naturais, de parentesco, por exemplo, e as segundas voltadas à criação de novas necessidades e vínculos outros, sendo compreendidas como mais transcendentes na medida gradual de sua sujeição à totalidade inacabada do presente com potencial criativo.


Ambas as relações são matéria de direito e objeto da infindável distinção científica entre direito natural e positivo em um confronto entre o conhecimento do homem social e a lei graduada em termos de validade e eficácia, entre o ideal consciente de justiça e a prática jurídica, cabendo sobre isso apenas ressaltar o fundamento não estático ou isolado da transcendentalidade sagrada à consciência humana.

Todavia, é na transgressão do direito legítimo seja ele oriundo de uma relação de necessidade ou de uma relação de interesse, que se encontra a expressão importante do ponto de vista jurídico, assim como a inconsciência o é para a medicina.

Relembre-se que direito legítimo é sobreposto ao poder que o valha, o que significa dizer que o direito precede essencialmente sua aplicação coercitiva no mundo social, o que se torna cabível, mediante transgressão, ação contrária ou relação negativa.

Exposto esse contexto, pode-se então e finalmente chegar à tangível relação da medicina com o direito, no que se denomina má prática médica ou ato ilícito por erro médico.


Em primeiro lugar é preciso definir as relações particulares e específicas a partir das quais pode ocorrer a transgressão de direito legítimo no que concerne a pratica médica, consistentes nas relações entre médico e paciente, relações entre paciente e hospital e relações entre paciente e plano de saúde.


Considerando que para todas as relações envolvidas há fixa presença do paciente, sendo este legítimo titular do direito ao atendimento de saúde é de se classificar a princípio como de necessidade as relações acima definidas, o que não exclui o alcance das relações de interesse na mesma órbita factual.

É no campo da prevenção, diagnóstico, prognóstico e tratamento que se encontra a relação de necessidade e ou interesse passíveis de alcance normativo sujeito à transgressão e ilicitude pelo titular do direito de prestar o atendimento à saúde mediante indicação de meios adequados ao paciente, o médico.
Nesse contexto consciência, medicina e direito convergem com o sentido de integrar valores individuais e coletivos rumo à evolução científica dinâmica e capaz de se aprimorar não apenas para atender a respectivas finalidades, mas para transcender a ignorância que subjuga as diferenças, realizando a dignidade humana.

Busquemos na história quantos obstáculos foram superados desde a teoria dos miasmas até os dias atuais, desde a escravidão por nascimento até a declaração dos direitos humanos e veremos que há elementos suficientes para que haja consciência jurídica na medicina.

Isto significa estruturar a ciência médica com os potenciais à coragem e à liberdade enquanto pilares do direito legítimo para que esta continue a transcender a dor, o sofrimento e a inconsciência desnecessária tão característicos de todos os tempos.

Bibliografia:
Prof.ª Cléa Góis e Silva - Jean Paul Satre - O ser para si – Jornal Existencial On line
Osmar José da Silva – Ponderações sobre direito natural e direito positivo (Apresentação de julho de 1998)