Dentro do que se pode compreender como fundamental na análise de qualquer fato cientificamente relevante certamente está a história e o que ela nos conta através de seres humanos engajados a construí-la com seus atos e por que não dizer, sacrifícios?
Assim é que homenagear o médico nascido na cidade de Paracatu em Minas Gerais, com o nome de Francisco de Mello Franco (1757 a 1822) de notável atuação no transcurso do século XVIII, nos dias atuais, plenos e práticos duzentos anos depois, em vésperas das comemorações de fim de ano, se afigura um memorial bastante apropriado.
Eis que o ilustre estudioso partiu das terras brasileiras onde nasceu, para em 1777 iniciar estudos na Universidade de Coimbra em Portugal, onde se matriculara para o curso de filosofia natural e medicina.
A Universidade de Coimbra, àquela época, desfrutava de certa liberdade científica paradoxalmente obtida à custa do despotismo esclarecido do Marquês de Pombal (1699 a 1777), considerado um dos maiores estadistas portugueses não obstante sua reconhecida condição de déspota e que afastara dos domínios jesuíticos o alcance das ciências, ampliando-o à valorização dos progressos das filosofias físicas e mecanicistas, inclusive e principalmente nos estudos médicos.
A era pombalina em Portugal foi permeada pela moderna concepção crítica à cultura livresca apontando-se a ideia de uma medicina empírico-racional muitíssimo conveniente a superar o misticismo religioso característico das atividades de cura à época.
No entanto, foi no contexto ululante do que a história lusitana registra como “A Viradeira” ou revide drástico da igreja à era de Pombal, que o jovem Francisco de Mello Franco chegou para iniciar seus estudos de medicina na Universidade de Coimbra em 1777, onde, desde logo, foi preso pelo Santo Ofício até o ano de 1781, acusado de ser herege e naturalista além de dogmático e reverso ao matrimônio...
Somente após cinco anos, em 1782 retomou seus estudos e formou-se em 1785, quando apesar das pressões religiosas o ensino médico em Portugal já se engajava em experimentalismo e prática, adotando, por exemplo, a dissecação de cadáveres para conhecimento do corpo humano.
Era mantida a noção hipocrática do equilíbrio dos humores (líquidos) corpóreos na manutenção da saúde, porém, a renovação do saber médico passou a traduzi-la em linguagem mecânica e hidrostática, numa concepção analógica entre o corpo e as máquinas e engenhocas evidenciadas no período iluminista e focalizadas pelo Marquês de Pombal ao tentar introduzir amplamente em Portugal tal visão mecanicista.
A visão idealizada pelo marquês, todavia, jamais pôde substituir a reiterada arte da navegação junto aos ânimos nacionais.
Foi em 1794 que o médico Mello Franco publicou anonimamente uma obra denominada “Medicina Teológica” onde diplomaticamente admitia o vínculo entre teologia e medicina para transformá-lo numa forma de moralização tanto da medicina quanto das próprias noções religiosas correntes, buscando, assim, separar os campos de atuação de ambas.
A contrariedade eclesiástica notável contra a obra refletiu o conteúdo insurgente da mesma ao buscar afastar a intervenção religiosa da medicina, na medida em que era adversa à cura por milagres, repudiando a prescrição médica de água benta, cultos, promessas, exorcismos etc., bastante praticada à época por grande parte dos que se atribuíam a condição de médicos.
A tônica desta insurgência moral, entre outras coisas, considerava o amor como patologia, não se referindo apenas à paixão ou à luxúria que se pudessem fazer includentes, mas a todo e qualquer amor, até mesmo o divino, ou seja, o interesse e demasiada dedicação a qualquer que fosse o objeto, era para o médico uma doença capaz de perverter os fluídos principais do corpo por decomposição das fibras nervosas.
O amor patológico de Mello Franco substituía a noção de pecado pela noção de doença e ofertava a medicina como solução, trocava os rigorosos açoites religiosos pela prescrição de antiafrodisíacos como a sangria, banhos frios, purgantes, anti-sépticos e bebidas refrigerantes.
Nesta obra que, de certo modo, até hoje, pode ser tida como revolucionária, se encontra assinalada a condução do amor ao espaço do corpo e ao olhar dos médicos numa característica predominante do discurso higienista, do domínio médico prescritivo moralista e normatizador da medicina voltada para a família e à educação do corpo.
O discurso médico era necessariamente um discurso moral e assumia um papel pedagógico visando garantir a saúde da população sob a égide da regeneração do corpo contra a decadência.
Francisco de Mello Franco condenava o sacrifício de adolescentes obrigadas a contrair matrimônio com senhores acima de 60 anos de idade ou bem mais, além de considerar o casamento das jovens impróprio pela falta de desenvolvimento orgânico para gestação, defendia o aleitamento materno e a ação transformadora dos exercícios físicos na formação das crianças.
Muito antes de Pasteur, Mello Franco já recomendava a fervura da água para prevenção de doenças e ainda que o fizesse com fundamento na então corrente, teoria dos miasmas, já era engajado na conferência de pesquisas para validar o uso de anti-sépticos combatentes da propagação dos compreendidos e pestilentos causadores aéreos das doenças (os miasmas).
Em 1817 Mello Franco voltou para o Brasil como médico particular da Princesa Leopoldina e ao término de seus dias foi vítima de intrigas palacianas que fizeram com que D. João VI o proibisse de entrar na corte por crer que o médico intencionava destituí-lo do poder.
Interessante uma frase do doutor, na obra intitulada “Elementos de Higiene“:
“Lembremo-nos que no Brasil principalmente nos portos do mar, é de necessidade introduzir todas as qualidades de exercícios varonis, com os quais aqueles habitantes frouxos e valetudinários já pelo clima, e já por hábito de indolência se fizessem vigorosos desde a sua mocidade.”
O ilustre Dr. Mello Franco era ele mesmo vítima da doença que apontava, por ser, evidentemente, por demais afeito tanto a sua ciência quanto à moral que corajosamente defendia e pela qual sofreu muitas vezes árduas conseqüências.
Por essas e outras é que o pleno século XXI não pode deixar de resguardar a ciência médica de qualquer intervenção política ou religiosa avessa ao ainda muitíssimo importante relacionamento do médico com a sociedade e seus indivíduos, considerando mesmo as novas exigências da vida e os dilemas da modernidade, como as pesquisas de célula tronco, o controle de natalidade e escolhas decorrentes da concepção indesejada em termos de franca e necessária evolução, inclusive normativa relacionada.
Homenageado, seja então, Francisco de Mello Franco.
Feliz Natal !
Bibliografia:
Jean Luiz Neves Abreu: “A Educação Física e Moral dos Corpos e a medicina luso-brasileira em fins do século XVIII” – Estudos Ibero Americanos, PUCRS, v.XXXII, n.2, p., 65-84, dezembro 2.006.
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