Não é honesto
negar a pertinência e o valor científico da elaboração marxista, a precisão da
análise sociológica que acompanha a diluída visão até hoje presente da luta de classes
e as revelações acerca dos movimentos sociais decorrentes desse impasse de má distribuição
de renda possível de transcender para má distribuição de valores resultante do
modo de produção capitalista.
De notar,
por outro lado, que a eclosão capitalista foi o resultado de muitos séculos de
redundância de uma mística obstativa das iniciativas intelectuais, artísticas
e científicas. O mundo comercial à parte da repressão religiosa ao lucro associou-se a
forças intelectuais dando margem aos institutos financeiros pelo apoio e
patrocínio à criação tendo como resultado a Revolução Industrial, o que por sua
vez passou a apontar a existência de uma classe intermediária entre ricos e
pobres, diante da melhor remuneração dos trabalhos não braçais enquanto necessidade da burguesia ascendente contra suposições dos nobres.
Os marxistas
mais ferrenhos, pode-se dizer, desconsideram, ou melhor, entendem como ficção a
existência da classe média, porque aí se compreende na produção criativa e
intelectual um proveito econômico definitivo de tendências direta ou
indiretamente correlatas à separação de classes e por conseguinte qualquer
manifestação de pensamento ou arte não tragável pelo modo de produção é uma inócua
contradição entre marginais arrogantes, não militantes de nenhuma causa, qual
seja, a dos ricos ou a dos pobres.
A invocada “prostituição”
ou caráter mercenário do intelectual, do profissional liberal nem sempre empregado, é tida como argumento inexorável porque
questões de sobrevivência do tipo “garantir o leitinho das crianças” ou “tapar
o sol com a peneira” sempre sujeitará a indisposição contra o pensamento num
indicativo muito simples de uma lógica elementar inconcebível pelo
materialismo, a de que pensamento não é coisa, circunstância por sua vez
traduzível pela neológica do verbo “coisar”, segundo a qual, se alguém não coisar eu não
vejo coisa nenhuma, ora!
É melhor nunca
ver, nem comer e só ouvir falar, já diria o poeta, porque afinal, caviar é
coisa e coisa dá ou não para entender.
O mundo é cheio
de sentidos e finalidades, isso é normal, e que se discutam esses sentidos e
finalidades é fundamental, no entanto, fuçar eventos da sobrevivência para
refutar o pensamento é um modo de preguiça e desestímulo tão próximo do
chiqueiro que faz inebriar ao ponto de minguar possibilidades à extensão do
átomo sem admitir a química. Por favor!
Assim, que se perceba
a preguiça de um modo de pensar é “coisa” fácil, o mecanismo de um modo de
pensar, um desafio, alcançar a virtualidade é domínio, ultrapassa a ciência e
pratica a arte, fato muito incômodo para o determinismo cumulativo de sucessos
e fracassos na classificação da espécie humana pela sua capacidade de adaptação
e sobrevivência benéfica aos mais medíocres de ideia.
Destarte, para
considerar a existência da classe média no particular aspecto do trabalho
intelectual e o espaço tecnológico virtual insurgente como meio, há que se
compreender a virtualidade do pensamento, sua essencial imaterialidade não
necessariamente metafísica, por não implicar ou servir à determinação causal ou
corresponder diretamente ao modo de produção, mas justamente por representar a “permanente
desconfiança da vida diante da mecanização” (Henri Louis Bergson).
A computação de
dados na rede internauta materializou e disponibilizou direitos intelectuais
facilitando de sobremaneira a exposição e manifestação de pensamento ao ponto
de indiciar um tipo de decadência autoral mais do que de marcas e patentes. Simultaneamente, tornam-se bem explícitos mecanismos atualizadores constantes da tecnologia
como prova de que o tecnólogo sabe tirar proveito de sua tecnologia exteriorizada aos fatos.
Tornamo-nos
cada vez mais dependentes das criações intelectuais e é um paradoxo fictício o temor
de que isso vá nos reduzir à competição com nossos acessórios, ainda que tenham
se tornado mais e mais importantes nas execuções de nosso aspecto sobrenatural
e nisso se compreenda o domínio das ordens materiais pela evolução das ciências
e das artes indissociáveis do pensamento.
O fato
interessante é talvez que se esteja hoje mais diante do desafio do que da causa
no traçar de linhas divergentes, já que a acomodação de efeitos possui métodos
econômicos de atualização automática enquanto mantemos o intervalo e a duração
tipicamente humanos entre ser e agir, donde pontualmente a sustentação, observe-se,
tornou-se palavra corrente, quase um conceito de época.
Não somos um
bonsai apesar de nossa sujeição aos cortes e obliterações dessa nova era, onde
o rigor do pensamento, a organização confrontam a vida orgânica e a fabricação
na busca de respostas perante uma inovadora esfera de liberdade amplificadora e
niveladora das oportunidades individuais com suas consequentes gratificações e
perdas.
Opinião e
crítica se sustentam na virtualidade e não é sensato, nesse contexto, que se
reduza ao materialismo pela sempre conveniente banalização da classe média, a valoração do
pensamento persistente entre os apragatados “sobreviventes” dessa seara
imprevisível tão desagradável às finalidades e sentidos de que estão repletos o
mundo, diga-se mais uma vez e de passagem.
Jussara Paschoini
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