segunda-feira, 24 de junho de 2013

A IMAGEM DO IMAGINÁRIO



É interessante notar em termos do diagnóstico por imagem que com a descoberta dos Raios X ocorrida em 08 de novembro de 1895 houve caracterização de uma sequência de estudos acerca dos raios catódicos (resultantes de descargas elétricas em gases rarefeitos) pelo alemão Roentgen, sendo certo que Crookes e Lenard, também estudiosos da época já haviam passado perto da descoberta; o primeiro por reclamar dos insumos fotográficos Ilford que próximos ao seu material de pesquisa ficavam velados e o segundo por ter incrementado um “tubo” (material de pesquisa) de criação do primeiro, com uma janela de alumínio que caso fosse mais espessa impediria a travessia de elétrons e produziria o feixe de Raios X.   

Todos os três pesquisadores Roentgen, Crookes e Lenard receberam o prêmio Nobel a partir do ano de 1901, práticos dezesseis anos após a descoberta.

O New York Times publicou 15 de março de 1896: “Sempre que algo extraordinário é descoberto, uma multidão de escritores apodera-se do tema e, não conhecendo os princípios científicos envolvidos, mas levados pelas tendências sensacionalistas, fazem conjecturas que não apenas ultrapassam o entendimento que se tem do fenômeno, como também em muitos casos transcendem os limites das possibilidades. Este tem sido o destino dos raios X de Roentgen.”.

Eis que, entretanto, apenas na segunda década do século XX, após muitos erros e acertos os raios X evoluíram com aparecimento de dispositivos geradores (ampolas) e desenvolveram-se só então sistemas de cálculo para controle da dosagem, ensejando a especificação de investigação diagnóstica ortopédica, pneumológica, oncológica etc., sem os efeitos nocivos e mesmo deletérios da radiação.

Daí o surgimento de novos aparelhos e o processo de contraste evoluíram para maior precisão de imagens trazendo o surgimento em 1972 da tomografia axial transversa computadorizada, como consequência também do surgimento dos primeiros circuitos integrados de computador desde 1964.

Não só imagem mas ondas eletronicamente produzidas fizeram também que em 1906 o holandês Willen Eithoven, ganhador do prêmio Nobel em 1924, descobrisse o galvanômetro de fio capaz de registrar tênues tensões que ocorrem em diferentes partes do corpo.

A partir daí se desenvolveu o galvanômetro de quadro capaz de medir as tensões do músculo cardíaco e plotá-las em gráfico (cardiograma).
 

Além disso, o galvanômetro de fio foi desenvolvido para captar extremamente baixas tensões geradas pelo cérebro na superfície do crânio (encefalograma), o que evoluiu com a amplificação eletrônica criando outros métodos para avaliação do corpo humano.

No final da década de 1940, diversos tipos de correntes passaram a ser usadas para fins eletro terapêuticos: galvânica, galvânica pulsante, surto galvânico, farádica, sinusoidal lenta, surto alternado, onda estática.

Esses focos evolutivos conduzem a pensar também sobre descoberta da penicilina pelo escocês Alexander Fleming em 1928, recordando que o pesquisador em Londres já descobrirá substância antibacteriana na lágrima e na saliva e certa feita, ao retornar de férias encontrou lâmina de pesquisa de estafilococos por ele esquecida fora da geladeira, infestada de fungos penicilium provavelmente vindos do andar de baixo onde se realizavam pesquisas com fungos.

Tendente a dispensar o material contaminado o pesquisador foi incitado por um amigo a analisar respectivo conteúdo e observou a formação de um halo transparente, o qual o levou a crença e registro de uma substância bactericida que passou a ser pesquisada através de teste de sensibilidade de outras culturas bacterianas.

Registre-se que a descoberta foi uma sequência de felizes coincidências:

  • O fungo contaminante provavelmente vindo do andar inferior era um dos três melhores produtores de penicilina;


  • O esquecimento durante um mês (período de férias) somado a uma súbita onda de frio na estação favoreceu o lento crescimento do fungo para a formação da evidência do halo transparente característico da lise bacteriana.
 

Pasteur sempre afirmou que “o acaso só favorece os espíritos preparados e não prescinde de observação”.

Somente em 1940 Howard Florey e Ernest Chain iniciaram a produção da penicilina em escala industrial, inaugurando a nova era médica dos antibióticos, sendo certo que a penicilina reduziu de 85% para 10% os casos de morte por infecção sanguínea em cadeia.

Esses eventos muito bem narrados pela obra denominada “Contágio”, um trabalho magnífico sobre história da medicina, são prova de que entre um fato cientificamente relevante ou não, a imagem que esse irradia, sua interpretação e consequências, decorre um período de tempo considerável e nesse período a honra de uma constatação será experimentada para novas conclusões nem sempre agradáveis.

Exemplo assim mais evidente está então no diagnóstico por imagem que atualmente se tornou o maior ditador de condutas médicas, não obstante certos limites registrados quando da própria descoberta dos raios X cujas repercussões da falta de estudos sobre dosagem poderia reverter muito contrariamente a premiação dos estudiosos responsáveis, favorecidos, de certo modo, pelo acaso.

Não é que se despreze o avanço técnico permitente da antevisão de condições internas do corpo humano, é que a ciência e o alcance da arte não podem ficar resumidas a tal. Não se dispensa ou se desmerece o exame clínico que vem sendo tratado de forma secundária nos atendimentos cotados por rapidez  a dispensar pacientes intactos pela conduta médica ao envio de métodos diagnósticos variados, muitas vezes desnecessários e impertinentes, além de dispendiosos.

A desconfiança passou a desmerecer a ciência e a impor um sem número de condutas cada vez mais distantes da pessoa humana, classificando como ética a escolha burocratizada, vegetal, registrada automaticamente num corolário fadado ao insuficiente, condição contraditória na prática de uma medicina que olvida cada vez mais de ser preventiva e curativa para ser defensiva numa total incompatibilidade com os ideais hipocráticos para dissabor dos efetivamente doentes ou mesmo hipocondríacos.

A transcendentalidade diferencial do humano não dispensou o misticismo capaz de desmerecê-la pela supervalorização determinista e classificatória do acaso. Por outro lado, esta disputa o peso da balança com a amplitude hipotética de resultados imaginários de diagnósticos supostamente sempre precisos, ainda que reconhecidamente dotados de ampla margem de limitações e impertinências.

A relação imaginária do ser humano com a imagem é simples e óbvia em produzir enganos que condenam por simples feiura, por falta de pormenores sagrados em desordem, tudo em descrédito de quem não vive atado e beneficiado na comodidade dos acúmulos fáceis, das soluções premeditadas por simples e conveniente vantagem. Enquanto esse óbice não for retomado para superação coerente e lógica, a terra do nunca governará decisões infanto-juvenis de gerações decadentes, crentes da moralidade na defesa de prezados dogmas  relevados por aparentes novidades interessantes vendidas ao  preço sempre mais alto e caro das banalidades bem elaboradas.
 

Jussara Paschoini

 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O PREÇO PÚBLICO E PRIVADO DO DIREITO DE IR E VIR





Não há equívoco na raiva quando se está encurralado e quando já se ultrapassou o limite do suportável. Institutos jurídicos como a legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, a coação moral irresistível, são retratos de que o direito contempla os limites de resistência a uma agressão injusta pelo ser humano tomado pelo instinto de reagir, negar e confrontar as circunstâncias capazes de destruí-lo física e moralmente.

Viver em sociedade e atender aos parâmetros exigidos de dignidade e trabalho enquanto elementos bastante associados aos meios de produção sujeita o indivíduo a dispor de seu tempo e liberdade a favor da sobrevivência e da realização. Limitar o homem a sobreviver sem realização é proposta conflitante porque sendo ele humano, uma aparelhagem biológica sofisticada, o é o suficiente para se desestimular diante do insulto e retroceder.

A imponência das rotinas constrói sistemáticas destinadas a manter o movimento e evitar o retrocesso, assegurando a ordem de sobrevivência que logicamente antecede a realização, contudo à medida que se evolui nas órbitas inalienáveis da humanidade, as sistemáticas vão revelando defeitos absurdos de oposição à vida na forma socialmente organizada e quando isso ocorre, o emaranhado de pontos de conexão e divergência já é tão grande que não há nenhuma solução dentro do embaraço institucionalizado. Acuado o ser humano se rebela e isso é mais que natural, é respeitável.

Nos centros urbanos ou mesmo nos meios rurais o transporte é o meio que garante acesso ao trabalho e não é novidade que em ambos os meios há sinais de crueldade, descaso e indignidade. Nas grandes cidades o aglomerado populacional justifica o descaso e no meio rural a simplicidade e a humildade justificam os paus de arara. Para ambos o resultado é desconforto, humilhação e castigo, para não se esquecer de manter o ritmo, de respeitar a rotina e sobreviver como manda a lei do “mais forte”.

Notável é no meio urbano com a superlotação de veículos cujo consumo é de interesse das metalúrgicas e o transporte coletivo nunca se disponibilizou confortável para, entre outros, favorecer àquele. O que se tem são os dependentes do combustível fóssil a disputar tempo e espaço em trajetos incrivelmente lentos e difíceis para sobreviver e ou realizar. E isso vem alargando falhas de execução reconhecidas em todos os polos sociais. Imunes são apenas pouquíssimos cuja locomoção vem se dando através de helicópteros limitados a ir e vir para locais onde haja heliporto.

Há limites para todos e mesmo os partidários da conservação mediadora dos nortes empresariais, se curvam diante do caos e lançam soluções restritivas para coibir os picos de congestionamento e poluição pelo excesso de veículos e locomoção de meios de transporte nos assim denominados rodízios municipais, reservantes de grandes áreas e horários para o trafego limitado, em São Paulo, no denominado centro expandido.

Os caminhões necessários ao abastecimento e preservação de produtos perecíveis ou não restaram proibidos de  fora dos horários compreendidos entre as 21h e 05h dos dias de semana e das 10h as 14h aos sábados. Solucionaram o impasse subdividindo o transporte das cargas no centro expandido pelo uso de veículos menores e vans, o que redundou no ingresso de um considerável número a mais de veículos. Manutenção do caos garantida.  

Desta circunstância o que se abstrai é que a limitação da entrada de produtos nos grandes centros em horários diferenciados, não se adaptou à rotina das empresas e aos horários de funcionamento das mesmas, por sua vez ocasionando a readaptação de meios de transporte e o desvio da intenção normativa do decreto municipal “kassabiano” 49.637, num indicativo da impertinência proibitiva não fundamentada no dialogo precedente e na reorganização de rotinas mantidas pela conveniência do condicional tácito ou formal.

Uma plausível conclusão a que se chega é que não há solução possível para o tráfego nos grandes centros sem remanejamento de rotinas e jornadas, ou seja, a recepção e organização das grandes e médias empresas precisa dividir jornadas e integrá-las a outros moldes de organização capaz de disponibilizar menos tempo com maior variação na consecução de serviços de preparo, tais como a reposição de estoque, acomodação e manejo de bens e produtos.

A limitação proibitiva e sancionada com multa ao fundamental direito de ir e vir revela repercussões desagradáveis e pede soluções incômodas para torná-la legitimamente provisória no contemplar e viabilizar mudanças cujo planejamento, por conta da lesão coibidora deveria ser precedente, justificativo, consciente e não manobra eleitoreira para o mero e ineficaz alarde político.

Outro aspecto importante ao apreço centraliza-se no transporte coletivo predominante das necessidades do povo e cuja organização tradicional ocorre pela cobrança de tarifa ou preço público do serviço de competência administrativa dos municípios e realização por meios privados de licitação que recentemente aprovou o aumento (revogado por força de protestos populares) ao invés de diminuir o número de pessoas permitidas por metro quadrado nos transportes coletivos por ônibus! Obra do apelido trabalhista, com vistas a proteger a minoração do preço da tarifa e favorecer aos empregados?


Isto indagado e engasgado, o que se tem nos termos da Lei 7.418/85, é que para os empregados cujo salário base compense um desconto de 6% há que se estabelecer vantagem na aquisição de vales-transportes. Tal decorre como é sabido porque então, ao empregador incumbirá o pagamento do saldo necessário ao número de conduções pertinentes à locomoção do empregado para o trabalho.

Dado o nível salarial e o excessivo número de conduções, haja vistas que se instituiu de modo insatisfatório o achincalhado bilhete único, as empresas privadas arcam com o pagamento de boa parte dos valores dispendidos no transporte público e é também delas o interesse no barateamento do preço.

Deste modo o poder público cede em espaço para que as empresas não cedam em valor e o povo fica supostamente protegido numa "lata de sardinhas" capaz de longas distâncias de dissabor não compensável pelos parcos pré-pagos valores do cartão limitado a duas horas de viagem e quatro conduções para o trabalhador e que varia para três horas para o não vinculado à empresa, no mal casado bilhete único. 

Observe-se que próprio empresário de acordo com o artigo 8º da referida Lei 7.418/85 poderia ele mesmo custear o transporte possivelmente mais confortável de seus funcionários elegendo privativamente preço e condições mais favoráveis à desoneração da oferta de vales-transportes, e assim não o faz, inclusive para não incidir nas horas extras “in itinere” enquanto sujeição normativa da CLT, além de sumular do Tribunal Superior do Trabalho.

Trata-se da medida em que ativação trabalhista é aplicável para computar o tempo de transporte fornecido pelo empregador como tempo trabalhado para sujeição de horas extras. Tudo especificado em detalhes de certa suspeita jurídica para caracterizar uma presumida exploração indevida das brechas e incapacitações do transporte público como extrapolação do poder patronal ao direcionar o ir e vir de seus empregados. (Artigo 58, parágrafo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho e Súmula 90 do TST).

 Explicando resumidamente, o empregador na falta de transporte público ou insuficiência horária deste, fica sujeito a promover por meios próprios o transporte de seus funcionários e isso é considerado tempo disponível computável na jornada de trabalho; caso dos paus de arara. Será?  

Todavia e por outro lado, a oferta de serviços públicos tarifados e sujeitos ao vale-transporte autorizaria a substituição no custeio correlato do empregador mediante a instituição de meios próprios e privados de condução, o que, entre outras coisas pela considerável possibilidade de questionamento judicial e incapacidade de gestão, não ocorre.

O preço do direito de ir e vir para o trabalho é público condicionado por irracionais e limitados interesses privados. Quem precisa sobreviver não se realiza e sofre com a péssima qualidade, além do alto custo, sem encontrar solução a curto e médio prazo porque rotinas estão acomodadas em rumos insuportáveis. Daí a legítima reação, a afronta ao público e ao privado somada ao desespero da falta de respostas, além da horrorosa desfaçatez dos governantes que passeiam em seus jatinhos e ainda se ressentem da indignação popular!

O aperfeiçoamento dos meios de transporte demanda revisão de rotinas e readequação dos meios tanto públicos quanto privados, além de possivelmente diferenciar e graduar vantagens de preço  do uso de transporte tarifado para horários menos carregados e menores distâncias.

No incentivo do remanejamento de horários e jornadas, poderia estar a adequação e implemento do  bilhete único (instituído em São Paulo pelo governo de Marta Suplicy) não só para atender a maiores distâncias como para reduzir as incompatibilidades de maiores custos e compensar a eventual configuração de encargos adicionais às empresas devidamente obrigadas a participar dos gastos na condução de seus funcionários, isso sem perder o possível alcance da gratuidade no transporte público por reorganização da instituição tributária compatível e aplicação do princípio da proporcionalidade para onerar maiores custos aos mais capacitados deste ponto de vista.

Não são legítimas proibições e negociações desconsideradoras do sagrado e constitucional direito de ir e vir e nem as usurpadoras da oferta de condições dignas de vida com realização, o que inclui vias e meios dignos de locomoção. A revolta popular oriunda deste desrespeito é legítima para merecer atitude e reparo por parte de seus causadores, inclusive no que concerne alguns concertos por manifestos mais exaltados, além da punição impiedosa aos abusos de poder escancarados na ilegalidade muito maior dos protagonistas policiais irreverentes à soberana vontade do povo.


 Jussara Paschoini


segunda-feira, 10 de junho de 2013

A DIGNIDADE NÃO É A CRUELDADE DO AVESSO


 

Dignidade é uma palavra, um símbolo e mais um mistério, tem expressão fundamental nos direitos humanos, vez que surgiu como bandeira contrária à dominação do homem pelo homem, nele agregando respeito e igualdade para que este não servisse de instrumento e tomasse as rédeas do próprio destino com autonomia e liberdade.

Ser digno, porém, é mérito de duas vertentes predominantes, uma em direção ao reconhecimento e outra em direção à reverência, e quando a segunda vertente está a balizar a condição, a liberdade perde o rumo, vira desafio, fica limitada como autonomia subjetiva, ganha condição de lei e se transforma em imposição de objetivo que assim há que ser legítimo,  ungido de compaixão e solidariedade.

Um cidadão pode até certo ponto, abrir mão de ser digno deixando de ser reconhecido por isso, mas não pode abrir mão de ser reverente à lei legítima, reconhecida pela razão e pela emoção, pois, nesse caso se sujeitará ao enfrentamento de consequências e também estará a desrespeitar o limite de terceiros.

A questão do reconhecimento além de ser subjetiva e misteriosa no que se relaciona com a banalidade do mal, é vinculada a agilidade e amplitude de representações culturais não precisando de determinante, a não ser e principalmente no que concerne a situações de perda visível onde como reflexão das práticas socioeconômicas se acuse o resultado desumano da humanidade, fazendo emergir o impositivo de reforços geralmente voltados à retomada de condições de subsistência e reafirmação do respeito.

Todavia, não é isso que importa quando a contrariedade ao digno redundar na crueldade humana para configurá-la meramente biológica, pressupondo-a ser fruto exclusivo da desigualdade e desrespeito subjetivos típicos das injustiças sociais porque carência não é indignidade embora o biologicamente privado esteja mais sujeito à falta de agilidade cumulativa de indiferenças formatadas para a possível  irreverência jurídica.

Reverenciar a lei no particular aspecto dos direitos humanos envolve, respeito à vida, à privacidade do lar, não discriminação, não imposição de sofrimentos e saúde, basicamente.

Não há nada de digno na irreverência aos direitos humanos, não há nada de belo, autêntico, justo, compensador ou válido. Há crime e crime precisa de correção e reparação, sendo muitíssimo evidente em todo o mundo a ineficácia praticada na sistemática punitiva enquanto paliativa das exigências motivacionais adequadas a satisfação da ordem pública e da capacidade moral ao qual se sujeitam o bem comum e a prática democrática, dentre tais exigências impossível não citar a educação.

É nesse sentido que o artigo 226, parágrafo sétimo da Constituição Federal se encontra como letra moribunda, praticado por parcas medidas que envergonham nossos olhares e nos fazem sentir menos dignos, menos valorizados e fadados a assistir crescer a ignorância fomentadora do poder corrupto vigoroso no rebaixamento de direitos e deveres cuja autonomia reside na preservação da capacidade de escolha não pertencente ao mundo das estimativas.

O referido dispositivo constitucional assim estabelece: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”.

Sem adentrar na restrição da responsabilidade paterna já que a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres faz subtender que se trate de responsabilidade bilateral, o parágrafo penúltimo do tratamento à condição basilar da família em sociedade, obriga ao Estado propiciar condições científicas e educacionais para o planejamento familiar.

Planejamento familiar trata, por conseguinte, de concepção e criação de seres humanos por natureza, vulneráveis, os filhos, a quem é lógico haverão de estar disponíveis recursos de proteção dos pais ou aqueles emergenciais decorrentes de arrastada ou empurrada falta de aplicação de recursos educacionais e científicos referidos na carta magna.

Não é necessário trazer médicos de Cuba ou da Europa ou mesmo angariar ocupação médica nacional para habilitar serviços de orientação conceptiva e da prática sexual mediante oferta tanto de métodos anticoncepcionais eficazes e graduados pela maior ou menor intenção de conceber, como de preservativos preventivos das doenças sexualmente transmissíveis. É precedente lógico da dignidade humana de que trata o dispositivo constitucional que se faça no mínimo um serviço com esse destino em cada bairro e em cada cidade por cada quatro mil habitantes que ali ocuparem, observando-se nesse número uma taxa de 17,9% de gravidez adolescente, entre 15 e 19 anos de idade.

Caso contrário, a dignidade humana embrulhada em gaze e enfiada no bolso não passa de mais um voto para o desespero de amanhã, um remedinho para tosse numa epidemia de tuberculose. Inadmissível antibiótico contra as condições formadoras da miséria irresponsável de herdeiros do desamparo.

Não se nega e nem se desmoraliza a caridade que alardeiam os nobres do alto de suas contemplações humanitárias na política ou em outro recanto dependente da coletividade carente, entretanto, não é algo para ser mais do que respeitado. Não merece reverência, muito pelo contrário, desconfiança persistente e incansável, inclusive por parte de quem indiretamente tem a própria autonomia lesada no rebaixamento de incríveis e lamentáveis estatísticas de abandono, criminalidade e violência, ignorância, mendicância, doenças sem tratamento e cura etc.

Fora do papel e da imunidade tributária das filantrópicas, a realidade está nas ruas, nas entradas dos estabelecimentos comerciais, na espreita dos caixas eletrônicos, nas filas dos postos de saúde e na cara feia da recepção dos hospitais públicos e privados, nas escolas depredadas, no transporte abarrotado nas manhãs e tardes de jornadas sem fim, muito mais do que nas diretrizes de quem quer se eleger e assim, consegue, pecando pela modéstia sem conferir os excessivos detalhes consequentes.

Reafirme-se então o artigo 29 da Declaração dos Direitos Humanos: “1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade. 2.No exercício desses direitos e no gozo dessas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática.”

Planejamento familiar é direito cujo amparo corresponde a dever estatal na proteção da família. É disposição constitucional sem cumprimento praticamente nenhum, enquanto que a distribuição de renda resta para considerações de ordem tributária, correspondente a quem tem renda ou consome ou abre uma organização não governamental sem fins lucrativos para ser caridoso, imune e não passar a vergonha de usar ou não a máquina política para apenas socorrer  a infindável primavera fértil dos mortos e feridos em todos os parâmetros consideráveis de dignidade, seja ela biológica, psicológica ou social.
 

Jussara Paschoini

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A DESPATRIMONIALIZAÇÃO DA FAMÍLIA




Uma resposta para o valor do ser humano em moeda corrente: Oitenta mil e cento e trinta e seis reais. Irá se perguntar se isso paga os cuidados maternos, o olhar confiante de uma criança, o conforto de um cônjuge ou mesmo o sorriso do vizinho. Não é possível saber, mas em termos oficiais, este é o valor de oitenta e quatro meses de salário mínimo, correspondente a sete anos de pena que geralmente se aplica a um homicida e portanto o valor tem fundamento.

Pretender falar sobre despatrimonialização da família e apontar critério monetário para o ser humano pode parecer um paradoxo, mas quem contempla o universo de direitos e deveres envolventes da relação familiar, entende o quanto esses laços se revertem em dinheiro e com a fúria que só os titãs de grandes escritórios, sabidos dos típicos rancores, sabem lidar e utilizar, cobrando em cifras bem maiores do que a apontada acima.

Assim, pincelando a insurgência francesa irada contra a admissão da união homoafetiva, o que se tem é uma reação de preservação de laços tradicionais e sanguíneos da relação familiar, quando a evolução de formas de associação outras, baseada em laços sentimentais e idealísticos outros vêm ganhando novas formas de expressão com consequente análise e consideração no mundo jurídico.

No Brasil podemos exemplificar a insistência do astro Pelé em não acatar uma paternidade sanguínea por negar vínculo afetivo com uma filha havida na juventude, cuja convivência correlata nunca ocorreu, o que não foi reconhecido pela justiça, mas ganhou intenso debate apesar da concretude constitucional determinante da desconsideração da antes vigente figura do filho ilegítimo. Atualmente o exame de DNA com confirmação da paternidade ou maternidade é impositivo inequívoco do laço de filiação, em total independência de matrimônio ou mesmo convivência.

Todavia, se não se tratar do astro Pelé, ou de alguém com patrimônio a se considerar, muito dificilmente se irá à busca do reconhecimento oficial de uma paternidade ou maternidade e eis o que apavora uma visão acerca do que se denomina despatrimonialização da família pelo reconhecimento de formas de união outras não pautadas pela tradição reprodutiva assegurada nos moldes naturais paternalistas e monogâmicos.

Outro exemplo interessante de despatrimonialização é o do filho sanguíneo da cantora Cassia Eller, cujo convívio se dava com a parceira homoafetiva a quem a Justiça conferiu a posse e guarda com todos os direitos decorrentes a desfavor do avô e pai da cantora, ascendente com laço sanguíneo e titular de condição que em lei conferiria normalmente a guarda.

Despatrimonialização da família significa sobrepor laços afetivos aos laços sanguíneos superlativos desde as origens romanas do “pater família” e por óbvio desperta os maiores rancores conhecidos pela história, principalmente os religiosos.

Reste claro, porém que a sobreposição afetiva dos laços não representa desvinculação material das sociedades familiares, apenas o seu deslocamento em atenção a outras formas de manifestação volitiva.

Com muita propriedade em trabalho feito para abordagem das relações poligâmicas, Fabricio Terra Azeredo, da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, interpreta o artigo 226 da Constituição Federal, tangente à condição basilar da família na sociedade e o reconhecimento da união estável como uma disposição de caráter protetivo com pouco ou nenhum caráter restritivo. Quer isso compreender e significar a pouca ou nenhuma intervenção do estado na formação do ente familiar.

Esta  pouca intervenção do estado interessa proteger a entidade e não condicionar pela lei o seu modo de formação, bem como as liberdades individuais exercidas nesse contexto.

Um exemplo de entidade familiar diferenciada está no artigo 25, parágrafo primeiro do Estatuto da Criança e do Adolescente, trata-se da família estendida ou ampliada, como aquela além dos pais e filhos e da unidade do casal, o que inclui vínculos de convivência, não só de parentesco próximo mas também afetivo.

Eis que nesse contexto de despatrimonialização da família o que vem despontando é a valorização e sagração do afeto e da escolha da criança e do adolescente acerca de reconhecer e consagrar o seu próprio e verdadeiro ambiente familiar, numa circunstância de superação da incapacidade para atos da vida civil, a qual em âmbito judicial, mediante análise e ratificação de profissionais habilitados se prioriza e decide a favor do fator psicoafetivo na determinação e posse e guarda de menores.

Observe-se também o instituto da guarda partilhada como alternativa, a qual, por sua vez, faz emergir as dissoluções das sociedades conjugais enquanto outro assunto de fundamental expressão, inclusive no tratar da inovação e reconhecimento de novos entes familiares, porque é certo que a liberdade não precisa corresponder à desordem e à insegurança jurídica.

Muito claro é que o trazer para a jurisdição de cada caso a análise de cada voluntariedade formadora da família reflete essa pouca intervenção estatal, mas também concentra no poder da solução litigiosa, assuntos cuja legalização tornaria segura.

Assim, ordenar que se proceda ao registro de casamento de homossexuais e de filhos de pais do mesmo sexo por uma via regulamentar e não legal, ensejará o questionamento judicial da validade do ato jurídico, considerando que a Constituição Federal, no seu artigo 226, parágrafo terceiro, faz expressa menção da união estável entre homem e mulher, oferecendo ao interesse litigante um poderoso argumento, sujeito a diversidade interpretativa jurisdicional de primeira, segunda e terceira instâncias.

A falta de legalidade enfraquece a juridicidade e não atende ao efeito pacificador de conflitos sempre possíveis no amplo espectro de conquistas individuais disponível ao exercício de vontades particulares e específicas, em circunstância que não esteja restrita, como de fato não está, apenas ao ente familiar heterossexual e monogâmico.

Deste modo, ponderar reflexos psicossociais e conveniências de ordem material no admitir uma sociedade conjugal onde o conceito de fidelidade seja substituído pelo conceito de lealdade; a coabitação tenha legitimidade opcional na caracterização do domicílio conjugal; o conceito de filiação seja substituído pelo interesse afetivo do menor a partir do momento em que este puder ser objeto de análise e definição; o regime legal (separação ou comunhão total ou parcial de bens) de bens abertos à convenção da instituição do tipo familiar são componentes de uma matéria importante, necessária ao tratamento legal nesta seara de despatrimonialização da família e dignidade do valor da pessoa humana enquanto pendências constitucionais.

Seria importante contemplar ainda previsão acerca dos graus de sucessão no contexto da despatrimonialização, não só para assegurar direitos hereditários dos filhos consanguíneos ou adotados, observada a herança necessária e testamentária, como também o redirecionamento dos graus de parentesco diante de especificidades do ente familiar, conforme regularizado pela possível manifestação de vontade das partes.

Frise-se mais uma vez e por fim, que a despatrimonialização da família não serve ao descrédito das instituições e laços vigentes, apenas se presta a consagrar a possibilidade e manifesto interesse na instituição voluntária de outras associações com predominância da ordem afetiva no reconhecimento de aptidões culturais e reedificação de direitos e deveres importantes a toda e qualquer ordem jurídica.


Jussara Paschoini