Não há equívoco
na raiva quando se está encurralado e quando já se ultrapassou o limite do
suportável. Institutos jurídicos como a legítima defesa, estrito cumprimento do
dever legal, a coação moral irresistível, são retratos de que o direito contempla
os limites de resistência a uma agressão injusta pelo ser humano tomado pelo
instinto de reagir, negar e confrontar as circunstâncias capazes de destruí-lo
física e moralmente.
Viver em
sociedade e atender aos parâmetros exigidos de dignidade e trabalho enquanto
elementos bastante associados aos meios de produção sujeita o indivíduo a dispor
de seu tempo e liberdade a favor da sobrevivência e da realização. Limitar o
homem a sobreviver sem realização é proposta conflitante porque sendo ele humano, uma aparelhagem
biológica sofisticada, o é o suficiente para se desestimular diante do insulto e
retroceder.
A imponência
das rotinas constrói sistemáticas destinadas a manter o movimento e evitar o
retrocesso, assegurando a ordem de sobrevivência que logicamente antecede a
realização, contudo à medida que se evolui nas órbitas inalienáveis da
humanidade, as sistemáticas vão revelando defeitos absurdos de oposição à vida na
forma socialmente organizada e quando isso ocorre, o emaranhado de pontos de conexão
e divergência já é tão grande que não há nenhuma solução dentro do embaraço
institucionalizado. Acuado o ser humano se rebela e isso é mais que natural, é
respeitável.
Nos centros
urbanos ou mesmo nos meios rurais o transporte é o meio que garante acesso ao
trabalho e não é novidade que em ambos os meios há sinais de crueldade, descaso
e indignidade. Nas grandes cidades o aglomerado populacional justifica o
descaso e no meio rural a simplicidade e a humildade justificam os paus de
arara. Para ambos o resultado é desconforto, humilhação e castigo, para não se
esquecer de manter o ritmo, de respeitar a rotina e sobreviver como manda a lei
do “mais forte”.
Notável é no
meio urbano com a superlotação de veículos cujo consumo é de interesse das
metalúrgicas e o transporte coletivo nunca se disponibilizou confortável para,
entre outros, favorecer àquele. O que se tem são os dependentes do combustível
fóssil a disputar tempo e espaço em trajetos incrivelmente lentos e difíceis
para sobreviver e ou realizar. E isso vem alargando falhas de execução
reconhecidas em todos os polos sociais. Imunes são apenas pouquíssimos cuja
locomoção vem se dando através de helicópteros limitados a ir e vir para locais
onde haja heliporto.
Há limites para
todos e mesmo os partidários da conservação mediadora dos nortes empresariais, se
curvam diante do caos e lançam soluções restritivas para coibir os picos de
congestionamento e poluição pelo excesso de veículos e locomoção de meios de
transporte nos assim denominados rodízios municipais, reservantes de grandes
áreas e horários para o trafego limitado, em São Paulo, no denominado centro
expandido.
Os caminhões
necessários ao abastecimento e preservação de produtos perecíveis ou não
restaram proibidos de fora dos horários compreendidos entre as 21h e 05h dos dias de semana e das 10h
as 14h aos sábados. Solucionaram o impasse subdividindo o transporte das cargas
no centro expandido pelo uso de veículos menores e vans, o que redundou no
ingresso de um considerável número a mais de veículos. Manutenção do caos
garantida.
Desta
circunstância o que se abstrai é que a limitação da entrada de produtos nos
grandes centros em horários diferenciados, não se adaptou à rotina das empresas
e aos horários de funcionamento das mesmas, por sua vez ocasionando a readaptação
de meios de transporte e o desvio da intenção normativa do decreto municipal “kassabiano”
49.637, num indicativo da impertinência proibitiva não fundamentada no dialogo
precedente e na reorganização de rotinas mantidas pela conveniência do
condicional tácito ou formal.
Uma plausível
conclusão a que se chega é que não há solução possível para o tráfego nos
grandes centros sem remanejamento de rotinas e jornadas, ou seja, a recepção e
organização das grandes e médias empresas precisa dividir jornadas e integrá-las
a outros moldes de organização capaz de disponibilizar menos tempo com maior
variação na consecução de serviços de preparo, tais como a reposição de estoque,
acomodação e manejo de bens e produtos.
A limitação
proibitiva e sancionada com multa ao fundamental direito de ir e vir revela
repercussões desagradáveis e pede soluções incômodas para torná-la
legitimamente provisória no contemplar e viabilizar mudanças cujo planejamento,
por conta da lesão coibidora deveria ser precedente, justificativo, consciente
e não manobra eleitoreira para o mero e ineficaz alarde político.
Outro aspecto importante
ao apreço centraliza-se no transporte coletivo predominante das necessidades do
povo e cuja organização tradicional ocorre pela cobrança de tarifa ou preço
público do serviço de competência administrativa dos municípios e realização
por meios privados de licitação que recentemente aprovou o aumento (revogado por força de protestos populares) ao invés de
diminuir o número de pessoas permitidas por metro quadrado nos transportes
coletivos por ônibus! Obra do apelido trabalhista, com vistas a proteger a minoração do
preço da tarifa e favorecer aos empregados?
Isto indagado e engasgado,
o que se tem nos termos da Lei 7.418/85, é que para os empregados cujo salário
base compense um desconto de 6% há que se estabelecer vantagem na aquisição de vales-transportes.
Tal decorre como é sabido porque então, ao empregador incumbirá o pagamento do saldo necessário
ao número de conduções pertinentes à locomoção do empregado para o trabalho.
Dado o nível
salarial e o excessivo número de conduções, haja vistas que se instituiu
de modo insatisfatório o achincalhado bilhete único, as empresas privadas arcam com
o pagamento de boa parte dos valores dispendidos no transporte público e é
também delas o interesse no barateamento do preço.
Deste modo o
poder público cede em espaço para que as empresas não cedam em valor e o povo fica
supostamente protegido numa "lata de sardinhas" capaz de longas distâncias de dissabor não compensável pelos parcos pré-pagos valores do cartão limitado a duas horas de viagem e quatro conduções para o trabalhador e que varia para três horas para o não vinculado à empresa, no mal casado bilhete único.
Observe-se que
próprio empresário de acordo com o artigo 8º da referida Lei 7.418/85 poderia
ele mesmo custear o transporte possivelmente mais confortável de seus funcionários
elegendo privativamente preço e condições mais favoráveis à desoneração da
oferta de vales-transportes, e assim não o faz, inclusive para não incidir nas
horas extras “in itinere” enquanto sujeição normativa da CLT, além de sumular
do Tribunal Superior do Trabalho.
Trata-se da
medida em que ativação trabalhista é aplicável para computar o tempo de
transporte fornecido pelo empregador como tempo trabalhado para sujeição de
horas extras. Tudo especificado em detalhes de certa suspeita jurídica para
caracterizar uma presumida exploração indevida das brechas e incapacitações do
transporte público como extrapolação do poder patronal ao direcionar o ir e vir
de seus empregados. (Artigo 58, parágrafo 2º da Consolidação das Leis do
Trabalho e Súmula 90 do TST).
Explicando resumidamente, o
empregador na falta de transporte público ou insuficiência horária deste, fica sujeito a promover por meios próprios o transporte de
seus funcionários e isso é considerado tempo disponível computável na jornada
de trabalho; caso dos paus de arara. Será?
Todavia e por outro lado, a
oferta de serviços públicos tarifados e sujeitos ao vale-transporte autorizaria
a substituição no custeio correlato do empregador mediante a instituição de meios próprios e privados de condução,
o que, entre outras coisas pela considerável possibilidade de questionamento
judicial e incapacidade de gestão, não ocorre.
O preço do
direito de ir e vir para o trabalho é público condicionado por irracionais e
limitados interesses privados. Quem precisa sobreviver não se realiza e sofre
com a péssima qualidade, além do alto custo, sem encontrar solução a curto e médio
prazo porque rotinas estão acomodadas em rumos insuportáveis. Daí a legítima
reação, a afronta ao público e ao privado somada ao desespero da falta de
respostas, além da horrorosa desfaçatez dos governantes que passeiam em seus jatinhos e ainda se ressentem da indignação popular!
O
aperfeiçoamento dos meios de transporte demanda revisão de rotinas e
readequação dos meios tanto públicos quanto privados, além de possivelmente
diferenciar e graduar vantagens de preço do uso de transporte tarifado para horários
menos carregados e menores distâncias.
No incentivo do
remanejamento de horários e jornadas, poderia estar a adequação e implemento do bilhete único (instituído em São Paulo pelo governo de Marta Suplicy) não só para atender a maiores distâncias como
para reduzir as incompatibilidades de maiores custos e compensar a eventual configuração
de encargos adicionais às empresas devidamente obrigadas a participar dos gastos na condução de seus funcionários, isso sem perder o possível alcance da gratuidade no transporte público por reorganização da instituição tributária compatível e aplicação do princípio da proporcionalidade para onerar maiores custos aos mais capacitados deste ponto de vista.
Não são
legítimas proibições e negociações desconsideradoras do sagrado e
constitucional direito de ir e vir e nem as usurpadoras da oferta de condições
dignas de vida com realização, o que inclui vias e meios dignos de locomoção. A revolta popular oriunda deste desrespeito é
legítima para merecer atitude e reparo por parte de seus causadores, inclusive
no que concerne alguns concertos por manifestos mais exaltados, além da punição
impiedosa aos abusos de poder escancarados na ilegalidade muito maior dos
protagonistas policiais irreverentes à soberana vontade do povo.
Jussara Paschoini
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