segunda-feira, 10 de junho de 2013

A DIGNIDADE NÃO É A CRUELDADE DO AVESSO


 

Dignidade é uma palavra, um símbolo e mais um mistério, tem expressão fundamental nos direitos humanos, vez que surgiu como bandeira contrária à dominação do homem pelo homem, nele agregando respeito e igualdade para que este não servisse de instrumento e tomasse as rédeas do próprio destino com autonomia e liberdade.

Ser digno, porém, é mérito de duas vertentes predominantes, uma em direção ao reconhecimento e outra em direção à reverência, e quando a segunda vertente está a balizar a condição, a liberdade perde o rumo, vira desafio, fica limitada como autonomia subjetiva, ganha condição de lei e se transforma em imposição de objetivo que assim há que ser legítimo,  ungido de compaixão e solidariedade.

Um cidadão pode até certo ponto, abrir mão de ser digno deixando de ser reconhecido por isso, mas não pode abrir mão de ser reverente à lei legítima, reconhecida pela razão e pela emoção, pois, nesse caso se sujeitará ao enfrentamento de consequências e também estará a desrespeitar o limite de terceiros.

A questão do reconhecimento além de ser subjetiva e misteriosa no que se relaciona com a banalidade do mal, é vinculada a agilidade e amplitude de representações culturais não precisando de determinante, a não ser e principalmente no que concerne a situações de perda visível onde como reflexão das práticas socioeconômicas se acuse o resultado desumano da humanidade, fazendo emergir o impositivo de reforços geralmente voltados à retomada de condições de subsistência e reafirmação do respeito.

Todavia, não é isso que importa quando a contrariedade ao digno redundar na crueldade humana para configurá-la meramente biológica, pressupondo-a ser fruto exclusivo da desigualdade e desrespeito subjetivos típicos das injustiças sociais porque carência não é indignidade embora o biologicamente privado esteja mais sujeito à falta de agilidade cumulativa de indiferenças formatadas para a possível  irreverência jurídica.

Reverenciar a lei no particular aspecto dos direitos humanos envolve, respeito à vida, à privacidade do lar, não discriminação, não imposição de sofrimentos e saúde, basicamente.

Não há nada de digno na irreverência aos direitos humanos, não há nada de belo, autêntico, justo, compensador ou válido. Há crime e crime precisa de correção e reparação, sendo muitíssimo evidente em todo o mundo a ineficácia praticada na sistemática punitiva enquanto paliativa das exigências motivacionais adequadas a satisfação da ordem pública e da capacidade moral ao qual se sujeitam o bem comum e a prática democrática, dentre tais exigências impossível não citar a educação.

É nesse sentido que o artigo 226, parágrafo sétimo da Constituição Federal se encontra como letra moribunda, praticado por parcas medidas que envergonham nossos olhares e nos fazem sentir menos dignos, menos valorizados e fadados a assistir crescer a ignorância fomentadora do poder corrupto vigoroso no rebaixamento de direitos e deveres cuja autonomia reside na preservação da capacidade de escolha não pertencente ao mundo das estimativas.

O referido dispositivo constitucional assim estabelece: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”.

Sem adentrar na restrição da responsabilidade paterna já que a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres faz subtender que se trate de responsabilidade bilateral, o parágrafo penúltimo do tratamento à condição basilar da família em sociedade, obriga ao Estado propiciar condições científicas e educacionais para o planejamento familiar.

Planejamento familiar trata, por conseguinte, de concepção e criação de seres humanos por natureza, vulneráveis, os filhos, a quem é lógico haverão de estar disponíveis recursos de proteção dos pais ou aqueles emergenciais decorrentes de arrastada ou empurrada falta de aplicação de recursos educacionais e científicos referidos na carta magna.

Não é necessário trazer médicos de Cuba ou da Europa ou mesmo angariar ocupação médica nacional para habilitar serviços de orientação conceptiva e da prática sexual mediante oferta tanto de métodos anticoncepcionais eficazes e graduados pela maior ou menor intenção de conceber, como de preservativos preventivos das doenças sexualmente transmissíveis. É precedente lógico da dignidade humana de que trata o dispositivo constitucional que se faça no mínimo um serviço com esse destino em cada bairro e em cada cidade por cada quatro mil habitantes que ali ocuparem, observando-se nesse número uma taxa de 17,9% de gravidez adolescente, entre 15 e 19 anos de idade.

Caso contrário, a dignidade humana embrulhada em gaze e enfiada no bolso não passa de mais um voto para o desespero de amanhã, um remedinho para tosse numa epidemia de tuberculose. Inadmissível antibiótico contra as condições formadoras da miséria irresponsável de herdeiros do desamparo.

Não se nega e nem se desmoraliza a caridade que alardeiam os nobres do alto de suas contemplações humanitárias na política ou em outro recanto dependente da coletividade carente, entretanto, não é algo para ser mais do que respeitado. Não merece reverência, muito pelo contrário, desconfiança persistente e incansável, inclusive por parte de quem indiretamente tem a própria autonomia lesada no rebaixamento de incríveis e lamentáveis estatísticas de abandono, criminalidade e violência, ignorância, mendicância, doenças sem tratamento e cura etc.

Fora do papel e da imunidade tributária das filantrópicas, a realidade está nas ruas, nas entradas dos estabelecimentos comerciais, na espreita dos caixas eletrônicos, nas filas dos postos de saúde e na cara feia da recepção dos hospitais públicos e privados, nas escolas depredadas, no transporte abarrotado nas manhãs e tardes de jornadas sem fim, muito mais do que nas diretrizes de quem quer se eleger e assim, consegue, pecando pela modéstia sem conferir os excessivos detalhes consequentes.

Reafirme-se então o artigo 29 da Declaração dos Direitos Humanos: “1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade. 2.No exercício desses direitos e no gozo dessas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática.”

Planejamento familiar é direito cujo amparo corresponde a dever estatal na proteção da família. É disposição constitucional sem cumprimento praticamente nenhum, enquanto que a distribuição de renda resta para considerações de ordem tributária, correspondente a quem tem renda ou consome ou abre uma organização não governamental sem fins lucrativos para ser caridoso, imune e não passar a vergonha de usar ou não a máquina política para apenas socorrer  a infindável primavera fértil dos mortos e feridos em todos os parâmetros consideráveis de dignidade, seja ela biológica, psicológica ou social.
 

Jussara Paschoini

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