segunda-feira, 3 de junho de 2013

A DESPATRIMONIALIZAÇÃO DA FAMÍLIA




Uma resposta para o valor do ser humano em moeda corrente: Oitenta mil e cento e trinta e seis reais. Irá se perguntar se isso paga os cuidados maternos, o olhar confiante de uma criança, o conforto de um cônjuge ou mesmo o sorriso do vizinho. Não é possível saber, mas em termos oficiais, este é o valor de oitenta e quatro meses de salário mínimo, correspondente a sete anos de pena que geralmente se aplica a um homicida e portanto o valor tem fundamento.

Pretender falar sobre despatrimonialização da família e apontar critério monetário para o ser humano pode parecer um paradoxo, mas quem contempla o universo de direitos e deveres envolventes da relação familiar, entende o quanto esses laços se revertem em dinheiro e com a fúria que só os titãs de grandes escritórios, sabidos dos típicos rancores, sabem lidar e utilizar, cobrando em cifras bem maiores do que a apontada acima.

Assim, pincelando a insurgência francesa irada contra a admissão da união homoafetiva, o que se tem é uma reação de preservação de laços tradicionais e sanguíneos da relação familiar, quando a evolução de formas de associação outras, baseada em laços sentimentais e idealísticos outros vêm ganhando novas formas de expressão com consequente análise e consideração no mundo jurídico.

No Brasil podemos exemplificar a insistência do astro Pelé em não acatar uma paternidade sanguínea por negar vínculo afetivo com uma filha havida na juventude, cuja convivência correlata nunca ocorreu, o que não foi reconhecido pela justiça, mas ganhou intenso debate apesar da concretude constitucional determinante da desconsideração da antes vigente figura do filho ilegítimo. Atualmente o exame de DNA com confirmação da paternidade ou maternidade é impositivo inequívoco do laço de filiação, em total independência de matrimônio ou mesmo convivência.

Todavia, se não se tratar do astro Pelé, ou de alguém com patrimônio a se considerar, muito dificilmente se irá à busca do reconhecimento oficial de uma paternidade ou maternidade e eis o que apavora uma visão acerca do que se denomina despatrimonialização da família pelo reconhecimento de formas de união outras não pautadas pela tradição reprodutiva assegurada nos moldes naturais paternalistas e monogâmicos.

Outro exemplo interessante de despatrimonialização é o do filho sanguíneo da cantora Cassia Eller, cujo convívio se dava com a parceira homoafetiva a quem a Justiça conferiu a posse e guarda com todos os direitos decorrentes a desfavor do avô e pai da cantora, ascendente com laço sanguíneo e titular de condição que em lei conferiria normalmente a guarda.

Despatrimonialização da família significa sobrepor laços afetivos aos laços sanguíneos superlativos desde as origens romanas do “pater família” e por óbvio desperta os maiores rancores conhecidos pela história, principalmente os religiosos.

Reste claro, porém que a sobreposição afetiva dos laços não representa desvinculação material das sociedades familiares, apenas o seu deslocamento em atenção a outras formas de manifestação volitiva.

Com muita propriedade em trabalho feito para abordagem das relações poligâmicas, Fabricio Terra Azeredo, da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, interpreta o artigo 226 da Constituição Federal, tangente à condição basilar da família na sociedade e o reconhecimento da união estável como uma disposição de caráter protetivo com pouco ou nenhum caráter restritivo. Quer isso compreender e significar a pouca ou nenhuma intervenção do estado na formação do ente familiar.

Esta  pouca intervenção do estado interessa proteger a entidade e não condicionar pela lei o seu modo de formação, bem como as liberdades individuais exercidas nesse contexto.

Um exemplo de entidade familiar diferenciada está no artigo 25, parágrafo primeiro do Estatuto da Criança e do Adolescente, trata-se da família estendida ou ampliada, como aquela além dos pais e filhos e da unidade do casal, o que inclui vínculos de convivência, não só de parentesco próximo mas também afetivo.

Eis que nesse contexto de despatrimonialização da família o que vem despontando é a valorização e sagração do afeto e da escolha da criança e do adolescente acerca de reconhecer e consagrar o seu próprio e verdadeiro ambiente familiar, numa circunstância de superação da incapacidade para atos da vida civil, a qual em âmbito judicial, mediante análise e ratificação de profissionais habilitados se prioriza e decide a favor do fator psicoafetivo na determinação e posse e guarda de menores.

Observe-se também o instituto da guarda partilhada como alternativa, a qual, por sua vez, faz emergir as dissoluções das sociedades conjugais enquanto outro assunto de fundamental expressão, inclusive no tratar da inovação e reconhecimento de novos entes familiares, porque é certo que a liberdade não precisa corresponder à desordem e à insegurança jurídica.

Muito claro é que o trazer para a jurisdição de cada caso a análise de cada voluntariedade formadora da família reflete essa pouca intervenção estatal, mas também concentra no poder da solução litigiosa, assuntos cuja legalização tornaria segura.

Assim, ordenar que se proceda ao registro de casamento de homossexuais e de filhos de pais do mesmo sexo por uma via regulamentar e não legal, ensejará o questionamento judicial da validade do ato jurídico, considerando que a Constituição Federal, no seu artigo 226, parágrafo terceiro, faz expressa menção da união estável entre homem e mulher, oferecendo ao interesse litigante um poderoso argumento, sujeito a diversidade interpretativa jurisdicional de primeira, segunda e terceira instâncias.

A falta de legalidade enfraquece a juridicidade e não atende ao efeito pacificador de conflitos sempre possíveis no amplo espectro de conquistas individuais disponível ao exercício de vontades particulares e específicas, em circunstância que não esteja restrita, como de fato não está, apenas ao ente familiar heterossexual e monogâmico.

Deste modo, ponderar reflexos psicossociais e conveniências de ordem material no admitir uma sociedade conjugal onde o conceito de fidelidade seja substituído pelo conceito de lealdade; a coabitação tenha legitimidade opcional na caracterização do domicílio conjugal; o conceito de filiação seja substituído pelo interesse afetivo do menor a partir do momento em que este puder ser objeto de análise e definição; o regime legal (separação ou comunhão total ou parcial de bens) de bens abertos à convenção da instituição do tipo familiar são componentes de uma matéria importante, necessária ao tratamento legal nesta seara de despatrimonialização da família e dignidade do valor da pessoa humana enquanto pendências constitucionais.

Seria importante contemplar ainda previsão acerca dos graus de sucessão no contexto da despatrimonialização, não só para assegurar direitos hereditários dos filhos consanguíneos ou adotados, observada a herança necessária e testamentária, como também o redirecionamento dos graus de parentesco diante de especificidades do ente familiar, conforme regularizado pela possível manifestação de vontade das partes.

Frise-se mais uma vez e por fim, que a despatrimonialização da família não serve ao descrédito das instituições e laços vigentes, apenas se presta a consagrar a possibilidade e manifesto interesse na instituição voluntária de outras associações com predominância da ordem afetiva no reconhecimento de aptidões culturais e reedificação de direitos e deveres importantes a toda e qualquer ordem jurídica.


Jussara Paschoini

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