Uma resposta
para o valor do ser humano em moeda corrente: Oitenta mil e cento e trinta e seis reais. Irá se perguntar se isso paga os cuidados maternos, o
olhar confiante de uma criança, o conforto de um cônjuge ou mesmo o sorriso do
vizinho. Não é possível saber, mas em termos oficiais, este é o valor de
oitenta e quatro meses de salário mínimo, correspondente a sete anos de pena
que geralmente se aplica a um homicida e portanto o valor tem fundamento.
Pretender falar
sobre despatrimonialização da família e apontar critério monetário para o ser
humano pode parecer um paradoxo, mas quem contempla o universo de direitos e
deveres envolventes da relação familiar, entende o quanto esses laços se
revertem em dinheiro e com a fúria que só os titãs de grandes escritórios,
sabidos dos típicos rancores, sabem lidar e utilizar, cobrando em cifras bem maiores do que a
apontada acima.
Assim,
pincelando a insurgência francesa irada contra a admissão da união homoafetiva, o que se tem é uma reação de preservação de laços tradicionais e
sanguíneos da relação familiar, quando a evolução de formas de associação outras,
baseada em laços sentimentais e idealísticos outros vêm ganhando novas formas
de expressão com consequente análise e consideração no mundo jurídico.
No Brasil
podemos exemplificar a insistência do astro Pelé em não acatar uma paternidade
sanguínea por negar vínculo afetivo com uma filha havida na juventude, cuja
convivência correlata nunca ocorreu, o que não foi reconhecido pela justiça, mas ganhou
intenso debate apesar da concretude constitucional determinante da
desconsideração da antes vigente figura do filho ilegítimo. Atualmente o exame
de DNA com confirmação da paternidade ou maternidade é impositivo inequívoco do
laço de filiação, em total independência de matrimônio ou mesmo convivência.
Todavia, se não
se tratar do astro Pelé, ou de alguém com patrimônio a se considerar, muito
dificilmente se irá à busca do reconhecimento oficial de uma paternidade ou maternidade
e eis o que apavora uma visão acerca do que se denomina despatrimonialização da
família pelo reconhecimento de formas de união outras não pautadas pela
tradição reprodutiva assegurada nos moldes naturais paternalistas e monogâmicos.
Outro exemplo
interessante de despatrimonialização é o do filho sanguíneo da cantora Cassia
Eller, cujo convívio se dava com a parceira homoafetiva a quem a Justiça
conferiu a posse e guarda com todos os direitos decorrentes a desfavor do avô e
pai da cantora, ascendente com laço sanguíneo e titular de condição que em lei conferiria
normalmente a guarda.
Despatrimonialização
da família significa sobrepor laços afetivos aos laços sanguíneos superlativos
desde as origens romanas do “pater família” e por óbvio desperta os maiores
rancores conhecidos pela história, principalmente os religiosos.
Reste claro,
porém que a sobreposição afetiva dos laços não representa
desvinculação material das sociedades familiares, apenas o seu deslocamento em
atenção a outras formas de manifestação volitiva.
Com muita
propriedade em trabalho feito para abordagem das relações poligâmicas, Fabricio
Terra Azeredo, da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro,
interpreta o artigo 226 da Constituição Federal, tangente à condição basilar da
família na sociedade e o reconhecimento da união estável como uma disposição de
caráter protetivo com pouco ou nenhum caráter restritivo. Quer isso compreender e significar a pouca ou
nenhuma intervenção do estado na formação do ente familiar.
Esta pouca
intervenção do estado interessa proteger a entidade e não condicionar pela lei
o seu modo de formação, bem como as liberdades individuais exercidas nesse
contexto.
Um exemplo de
entidade familiar diferenciada está no artigo 25, parágrafo primeiro do
Estatuto da Criança e do Adolescente, trata-se da família estendida ou
ampliada, como aquela além dos pais e filhos e da unidade do casal, o que inclui
vínculos de convivência, não só de parentesco próximo mas também afetivo.
Eis que nesse
contexto de despatrimonialização da família o que vem despontando é a
valorização e sagração do afeto e da escolha da criança e do adolescente acerca
de reconhecer e consagrar o seu próprio e verdadeiro ambiente familiar, numa
circunstância de superação da incapacidade para atos da vida civil, a qual em
âmbito judicial, mediante análise e ratificação de profissionais habilitados se
prioriza e decide a favor do fator psicoafetivo na determinação e posse e
guarda de menores.
Observe-se
também o instituto da guarda partilhada como alternativa, a qual, por sua vez,
faz emergir as dissoluções das sociedades conjugais enquanto outro assunto de
fundamental expressão, inclusive no tratar da inovação e reconhecimento de
novos entes familiares, porque é certo que a liberdade não precisa corresponder
à desordem e à insegurança jurídica.
Muito claro é que o
trazer para a jurisdição de cada caso a análise de cada voluntariedade
formadora da família reflete essa pouca intervenção estatal, mas também
concentra no poder da solução litigiosa, assuntos cuja legalização tornaria
segura.
Assim, ordenar
que se proceda ao registro de casamento de homossexuais e de filhos de pais do
mesmo sexo por uma via regulamentar e não legal, ensejará o questionamento
judicial da validade do ato jurídico, considerando que a Constituição Federal,
no seu artigo 226, parágrafo terceiro, faz expressa menção da união estável
entre homem e mulher, oferecendo ao interesse litigante um poderoso argumento,
sujeito a diversidade interpretativa jurisdicional de primeira, segunda e
terceira instâncias.
A falta de
legalidade enfraquece a juridicidade e não atende ao efeito pacificador de
conflitos sempre possíveis no amplo espectro de conquistas individuais
disponível ao exercício de vontades particulares e específicas, em circunstância que não esteja restrita, como de fato não está, apenas ao
ente familiar heterossexual e monogâmico.
Deste modo,
ponderar reflexos psicossociais e conveniências de ordem material no admitir
uma sociedade conjugal onde o conceito de fidelidade seja substituído pelo
conceito de lealdade; a coabitação tenha legitimidade opcional na
caracterização do domicílio conjugal; o conceito de filiação seja substituído pelo
interesse afetivo do menor a partir do momento em que este puder ser objeto de
análise e definição; o regime legal (separação ou comunhão total ou parcial de
bens) de bens abertos à convenção da instituição do tipo familiar são
componentes de uma matéria importante, necessária ao tratamento legal nesta
seara de despatrimonialização da família e dignidade do valor da pessoa humana
enquanto pendências constitucionais.
Seria importante
contemplar ainda previsão acerca dos graus de sucessão no contexto da despatrimonialização,
não só para assegurar direitos hereditários dos filhos consanguíneos ou
adotados, observada a herança necessária e testamentária, como também o
redirecionamento dos graus de parentesco diante de especificidades do ente
familiar, conforme regularizado pela possível manifestação de vontade das partes.
Frise-se mais
uma vez e por fim, que a despatrimonialização da família não serve ao descrédito das
instituições e laços vigentes, apenas se presta a consagrar a possibilidade e
manifesto interesse na instituição voluntária de outras associações com
predominância da ordem afetiva no reconhecimento de aptidões culturais e reedificação
de direitos e deveres importantes a toda e qualquer ordem jurídica.
Jussara Paschoini
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