terça-feira, 22 de abril de 2014

SOBRE SER ATÉIA



Enquanto olho para o copo de bebida penso: todo mundo tende a ser obeso e alcoólatra. Quem nunca acordou pensando em tomar uma dose logo em jejum ou imaginou pedir mais uns quatro sanduíches depois daquele primeiro, escolhido e devorado com prazer?

Não é que ceder lá uma vez ou outra ao inusitado de um desejo seja problema e nem que quem cede frequentemente mereça julgamento de quem quer que seja, é que hoje comparo a situação com a fé em Deus e incrível no aparente, constato em mim um mesmo e muitíssimo semelhante alarme de moderação.

Não tenho religião e nem cultivo nenhuma crença porque opinei por afastar, na medida do possível, todo o dogmatismo, de qualquer espécie, inclusive político, entretanto, atento para os vícios da palavra e noto que a contrariedade e o medo ainda possuem um nome cuja tradução fiz automatizar sempre que a sombra de tal me invade pretensa de ser o que não é.

Minha esquiva não diz respeito a representação em si, falo do engano de ultrapassar limites de si até não saber mais de si, viver inconsciente como que alcoolizado, faminto e insaciável ao ponto de se desaperceber de qualquer relação porque não há mais o que relacionar, tudo estando reduzido a alguma coisa, a alguma satisfação, uma resposta carimbada como eterna.

É carnal precisar do mundo ao redor e a carne não pode nem dar e nem negar o mundo, é mero instrumento de relação, é propriedade inalienável, merece cuidado e bom tratamento porque é perecível como tudo mais, sujeita a mofo, estragos e acidentes, embora servida pelo domínio diferenciado da razão e da vontade, como tal, lançadas na perspectiva da dose, direção, controle e possibilidades.

Deus invade minha vida todos os dias, como aquela dose e aquela fome imotivadas. Trato de evitar até não poder mais, então, dialogo com a dose e vivo momentos de embriaguez com a luz do sol ou a luz da lua, uma flor, um homem e uma mulher, uma estrada, um assado, um sorriso e muitas lágrimas, um livro e algum amigo...assim, não acredito em Deus.

Jussara Paschoini     


domingo, 13 de abril de 2014

ADVOGUE, SE PUDER...



Um curso concorrido, um sonho de jovens, um talento de todos, o direito passa pela vida e a cabeça de muita gente. Fazer Justiça é a bem-aventurança cristã, é prova de bravura e de índole moral poderosa, não obstante, tão logo surja a profissão, a atividade causídica em si, o conflito de razões inesperadas, com os trâmites burocráticos, a conferência interminável de condições e prazos processuais aos quais sujeitam-se as partes e jamais os donos do poder decisório, muitas vezes exercido ao bel prazer de egos cultivados no êxito concursal de anos pós-faculdade; a beleza embaça e o herói perde o charme, vira a caricatura de uma proposta enaltecedora.

Não é apenas isso, também o estigma do indivíduo safado, driblador da lei, ladrão das vontades sobre quem recai a morosidade dos sonhos que não se realizam a contento e não sem sacrifício, certamente acompanhará o percussionista engajado na defesa de interesses incisivos e esquivos, o tal advogado.

A porta do purgatório e o advogado nela e quanto mais capacidade e eloquência, maior a suspeita, contudo, não seja esse profissional humilde, nada de franciscano, irmão sol e irmão lua, advogado sem arrogância acaba virando padre e assim, diferente, só é notado em sua falta de santidade quando a causa desanda e a certeza se perde para revelar o malandro de marca maior.

Se for mulher é meio caminho andado para ser aproveitadora e deixar qualquer cônjuge sem as calças na primeira oportunidade. Só a nobreza "de origem" pode livrar uma trabalhadora da lei de sua sina dominadora, sua marca caçadora ou caçada. Ser puta é muitas vezes mais nobre, não cobra jantarzinho, florzinha, perfuminho e ora, não sabe litigar! É só vagina e preço! Honorários e divisão de bens e despesas, nem pensar!  

Não bastasse tudo isso, a multiplicidade de exigências ao caráter de um advogado passa pela linguística, porque deve desenvolver a tradição de brocados e o jogo falatório típico da conservação e da categoria rebuscada, pretensa de qualquer interessado e ser nesta razão ridicularizado pelo visível desuso do estilo verbal e literário, longe da leveza prazerosa típica do exercício profissional da palavra, o qual, por conseguinte, se considera mais legítimo, talvez mais popular e por isso, mais honesto.

Muitos cursam o direito, muitos são malandros de qualquer profissão, poucos advogam, porque isso faz sofrer de um sofrimento que não tem nome, eira nem beira, o de tomar para si a dor e as razões de outros seres humanos queridos ou achincalhados por suas personalidades e atitudes, é ser espelho de uma vontade maior que não lhe pertence e não tem nada de divina, é pura e simplesmente humana, com suor, sangue e fezes.

De sobra, se preserva por necessidade a riqueza do vocabulário a exploração dos recôncavos do dizer, com efeito, de preferência os melhores para satisfazer o patrocínio de quem quer que seja, o mandatário aceito e a causa que se abraçou para libertar o humano ao custo de massa cinzenta e verbo forte para quem o verbo vale em ação, literalmente.

Advogue, se puder, porque não é mera questão de querer e muito menos de acertar, ou se é, ou se fica imaginando ser no direito que nada é e pouco opera se submetido apenas às razões predominantes de certos moralistas, pouco mutáveis senão pelo verbo de quem se engaja a buscar e valorizar o confronto, ainda que isso represente um caminhar caduco de soerguimentos e tombos nem sempre compensados pelos ideais simplificados de felicidade e beleza, tão impossível para os chatos de profissão descontente.

Seja advogado se puder, porque isso implica, pelo nome, em comparecer, sem atraso, sempre que chamado, ao lado de quem te evoca, e cobre, senão gratidão, a alma porque não há dinheiro para a pobreza exigida pelo diabo quando escolhe uma posição que nunca implicará em pernas abertas, mas em cabeça erguida e passos firmes diante de pedras, trevas, fome e insônia, guardando o nada de si a favor de outrem.

Da inteligência aplicada ao retardo de renegados, a palavra delineia uma ponte onde o passado e o futuro da humanidade ganham expressão, e nela, existe um estúpido que te faz acreditar porque pode, por direito, este é um advogado e sem ele, não se faz Justiça e nem a visão do contrário. Isso mesmo.

Jussara Paschoini





domingo, 6 de abril de 2014

IMAGINE...




Imaginamos e nada é como imaginamos, senão não imaginaríamos. Interessante é que pode ser melhor, pode ser pior e também pode ser bem próximo da realidade sem nada ser, mas é fato que sem imaginação nem um almoço tem graça.

Um bife de ancho é só um bife de ancho até você pegar a peça congelada ou não, imaginar o que vai usar para o tempero, o acompanhamento, e mesmo que tudo se resuma a sal grosso adiantado pela manhã, arroz integral no ponto rápido e preciso da panela de pressão, feijão temperado na hora com alho e sal e uma saladinha de alface com cebola, azeite e limão, tudo começou imaginado o barulhinho da gordura queimando em meio a ervas aromáticas jamais aparentes no prato feito afinal de outro jeito.

Ainda que a sobremesa não seja de própria autoria e tenha o carimbo de um confeito qualquer mais próximo de casa, com chocolate e avelã no glacê do bolo feito para fazer você feliz, bem mais do que seria com um pedaço de equivalente e supervalorizado ovo de páscoa, o café coado direto na garrafa térmica previamente aquecida junto com as xícaras certamente terá o aroma sonhado, no atraso de alguma hora ao expectante deleite. Doce é sempre doce e se for bolo com creme levinho e castanhas, melhor. Café, ah...café com tudo!

Certo que um ovo vaporizado ao molho de trufas dos montes farejados por perdigueiros tradicionais e cogumelos austríacos assados na lenha, acompanhado por um vinho toscano traduzirá talvez, algo mais imaginativo, mais com cara de sonho a realizar, entretanto, imaginação tem dimensão própria, livre de floreios. É luxo de quem tem e não de quem pode comprar, aliás, nada mais sem imaginação do que a certeza dada pela grana.

Falta de imaginação também é crer que a dor de cabeça valha uma Pirassununga frente a um legítimo escocês, porque não tem imaginação que dê jeito nisso.

Nada é como imaginamos mas é muito menos o inimaginável, por mais que se tenha e por menos que se precise fazer a respeito. É sensato que o tempo desfaça vaidades, dificulte algumas escolhas e facilite outras. Equívoco é que a imaginação pereça por isso e que fiquemos abandonados a algum destino comprado sem chance de decepção sequer, porque desistimos desse importante desafio.  

Quer comer um bife? Imagine antes...

Jussara Paschoini