A utopia da
“Cidade do sol” de Tomás Campanella traz um modelo ideal de sociedade segundo a
mente brilhante e revolucionária de um livre pensador do século XVI, nascido em
05 de setembro de 1.568. Trata-se de uma composição libertária de um condenado
à morte levado à prisão por atenuar a pena fingindo-se de louco. Era considerado
herege, vez que, como pessoa educada no seio das instituições religiosas de sua
época, desenvolveu própria visão avessa à tirania, à hipocrisia e ao sofisma
que permeava o exercício do poder então.
Nascido no
contexto da dominação espanhola na Itália, Giovanni Domenico Campanella tinha
pretensões de lutar não só para desvencilhar-se da invasão espanhola, mas para
criar um novo mundo com fundamento nos conhecimentos teológicos, científicos e
filosóficos aos quais se entregou desde muito jovem e donde adotou o que veio a
ser sua identificação desde os quinze anos de idade, o nome do mestre Tomás
de Aquino.
Titular de
uma cultura ímpar escreveu sobre inúmeras ciências, desfrutando da vantagem de
um tempo onde o conhecimento não era burocratizado pela utilidade pura e
simples, mas era sim derivado da capacidade de entender tudo o quanto fosse
possível ao alcance da mente na produção de um saber, para Campanella, mais
direto e não mediado pela autoridade.
Voltando, contudo,
à obra mais popular do pensador, cumpre então visualizar o que talvez uma boa
parte dos observadores da grandiosa empreitada não faça, haja vistas ao fato de
que se comtempla muito mais a concepção de uma sociedade na “Civitas Solis”, do
que o ser humano idealizado naquela utopia. Daí o fato de, com muita
propriedade, encontrarmos estudiosos confrontantes dos aspectos objetivos da
utopia com a subjetividade emergente dos tempos atuais.
Do ponto de
vista objetivo e muito resumidamente, a Cidade do Sol é um lugar arquitetado
não pelo poder de dominação, mas da organização e conhecimento sob o valor da
sapiência e a noção desta como inversamente proporcional ao autoritarismo.
O
Metafísico, autoridade máxima desta sociedade, talvez, pela origem e fidelidade
de sua concepção em Campanella, guarde relação com o ícone Cristão e a trindade
mediadora desta autoridade, a potência, a sabedoria e o amor representam
respectivamente o domínio das artes militares, das ciências e da geração entre
homem e mulher, assim como da educação e agricultura, por liames originais.
Repare-se que
a arte militar é difusa, todos compõem a realização da potência, não há um
grupo militar, uma polícia, um exército em apartado e a regra do uso da força
deve resultar em compaixão e serviço regenerador a favor do inimigo, sempre que
possível.
Não há na Cidade
do Sol, para efeitos da fruição do saber e das artes, diferença entre homens e
mulheres, os quais, desde criança teriam acesso a todos os conhecimentos e
práticas em educação voltada ao trabalho, com livre descoberta de aptidão
própria na condução à condição de mestre e depois de magistrado, para
realização, ensino e incentivo de escolhas acerca da formação e juízos
correlatos.
O trabalho em
si não ocuparia mais de quatro horas diárias e o restante do tempo poderia ser
dedicado ao lúdico e ao intelectual.
Não há
constituição familiar monogâmica ou poligâmica, há um modo rotativo de relacionamento
onde homens e mulheres conviveriam por seis meses, e nisso muitos concebem que
Campanella idealizou o “uso comum” inclusive da mulher. Trata-se de uma distorção ao nível imbecil
acerca de uma forma de convívio simples, idealizada em livre pensamento, para
acontecer entre seres humanos igualmente educados e insubmissos a autoritarismo,
por conseguinte, não necessariamente vinculados pela finalidade reprodutiva ou pelos dogmas religiosos na ambígua contraposição da mera multiplicação ou da
luxúria.
Aliás, a
geração, é um assunto específico e tratado com particular atenção no mundo
ideal solar. A produção de filhos, em Campanella, tem feições de eugenia,
porque o filósofo ascende ao alcance das ciências e considera a abolição dos
defeitos genéticos uma grandeza factível ao homem. Muito longe de qualquer
insurgência nazista de uma raça pura, no caso, a utopia antevê o que vem hoje
se realizando em termos de reprodução assistida e engenharia genética.
A paixão
violenta recebe o seguinte tratamento: “Quando um indivíduo se apaixona
violentamente por uma mulher, permitem-lhe os colóquios, divertimentos e
recíprocos presentes de flores e de poesias“.
Não há
desprezo à paixão, esta recebe o tratamento permissivo, direcionado ao
compreendido como manifesto de amor, mediante agrados recíprocos, amizade e
concupiscência. Compreendam-se, pois, inclusos, os apetites sexuais.
Apenas há ressalva de que o amor não possa
ameaçar a geração. Na hipótese de incompatibilidade de vínculos reprodutivos dos
apaixonados, poderiam estes se unir, se a mulher já se encontrasse grávida de
outro pai ou se fosse estéril. A maternidade é sagrada e assim também o amor, mas
tudo observa um compromisso responsável.
Assim, a
Cidade do Sol é a conquista do bem comum assegurando a sociedade.
Não obstante,
é possível romper com a noção coletiva projetada nesta utopia, onde muito se
interpreta que há renúncia de todo interesse particular em nome da civilidade,
ou seja, não é por conta do despojamento da propriedade, da herança e do
amor-próprio que se pode concluir um indivíduo simplesmente subserviente em sua
vida “solar”.
O homem solar,
quer dizer, o indivíduo na Cidade do Sol, não só é livre de toda mesquinharia
residual das posses características das organizações humanas, como também nasce
exposto a um ambiente permitente de experiências abertas a um conhecimento de
si e do mundo, jamais posto em prática quer no meio tomado pelo conservadorismo
medieval no acinte renascentista, quer nos movimentos libertários do século XX
e sequer cogitado pelo subjetivismo individualista do mundo pós-moderno.
Tomás Campanella
com filosofia e sensibilidade, preso por vinte e sete anos, concebeu um dos
indivíduos racionais mais livres da face da terra, sem desprezar nenhum
conteúdo da riqueza humana em natureza, arte, ciência e mesmo religião, num
belo jogo disposto em sete círculos estrategicamente organizados para
multiplicar a proteção de tão precioso sonho.
Jussara Paschoini
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