segunda-feira, 18 de junho de 2012

UM FREI RENASCENTISTA PARA QUEM AINDA SOMOS GRANDES “CARETAS”





A utopia da “Cidade do sol” de Tomás Campanella traz um modelo ideal de sociedade segundo a mente brilhante e revolucionária de um livre pensador do século XVI, nascido em 05 de setembro de 1.568. Trata-se de uma composição libertária de um condenado à morte levado à prisão por atenuar a pena fingindo-se de louco. Era considerado herege, vez que, como pessoa educada no seio das instituições religiosas de sua época, desenvolveu própria visão avessa à tirania, à hipocrisia e ao sofisma que permeava o exercício do poder então.

Nascido no contexto da dominação espanhola na Itália, Giovanni Domenico Campanella tinha pretensões de lutar não só para desvencilhar-se da invasão espanhola, mas para criar um novo mundo com fundamento nos conhecimentos teológicos, científicos e filosóficos aos quais se entregou desde muito jovem e donde adotou o que veio a ser sua identificação desde os quinze anos de idade, o nome do mestre Tomás de Aquino.

Titular de uma cultura ímpar escreveu sobre inúmeras ciências, desfrutando da vantagem de um tempo onde o conhecimento não era burocratizado pela utilidade pura e simples, mas era sim derivado da capacidade de entender tudo o quanto fosse possível ao alcance da mente na produção de um saber, para Campanella, mais direto e não mediado pela autoridade.


                                            




Voltando, contudo, à obra mais popular do pensador, cumpre então visualizar o que talvez uma boa parte dos observadores da grandiosa empreitada não faça, haja vistas ao fato de que se comtempla muito mais a concepção de uma sociedade na “Civitas Solis”, do que o ser humano idealizado naquela utopia. Daí o fato de, com muita propriedade, encontrarmos estudiosos confrontantes dos aspectos objetivos da utopia com a subjetividade emergente dos tempos atuais.

Do ponto de vista objetivo e muito resumidamente, a Cidade do Sol é um lugar arquitetado não pelo poder de dominação, mas da organização e conhecimento sob o valor da sapiência e a noção desta como inversamente proporcional ao autoritarismo. 

O Metafísico, autoridade máxima desta sociedade, talvez, pela origem e fidelidade de sua concepção em Campanella, guarde relação com o ícone Cristão e a trindade mediadora desta autoridade, a potência, a sabedoria e o amor representam respectivamente o domínio das artes militares, das ciências e da geração entre homem e mulher, assim como da educação e agricultura, por liames originais.

Repare-se que a arte militar é difusa, todos compõem a realização da potência, não há um grupo militar, uma polícia, um exército em apartado e a regra do uso da força deve resultar em compaixão e serviço regenerador a favor do inimigo, sempre que possível.

Não há na Cidade do Sol, para efeitos da fruição do saber e das artes, diferença entre homens e mulheres, os quais, desde criança teriam acesso a todos os conhecimentos e práticas em educação voltada ao trabalho, com livre descoberta de aptidão própria na condução à condição de mestre e depois de magistrado, para realização, ensino e incentivo de escolhas acerca da formação e juízos correlatos.

O trabalho em si não ocuparia mais de quatro horas diárias e o restante do tempo poderia ser dedicado ao lúdico e ao intelectual.

Não há constituição familiar monogâmica ou poligâmica, há um modo rotativo de relacionamento onde homens e mulheres conviveriam por seis meses, e nisso muitos concebem que Campanella idealizou o “uso comum” inclusive da mulher.  Trata-se de uma distorção ao nível imbecil acerca de uma forma de convívio simples, idealizada em livre pensamento, para acontecer entre seres humanos igualmente educados e insubmissos a autoritarismo, por conseguinte, não necessariamente vinculados pela finalidade reprodutiva ou pelos dogmas religiosos na ambígua contraposição da mera multiplicação ou da luxúria.  

Aliás, a geração, é um assunto específico e tratado com particular atenção no mundo ideal solar. A produção de filhos, em Campanella, tem feições de eugenia, porque o filósofo ascende ao alcance das ciências e considera a abolição dos defeitos genéticos uma grandeza factível ao homem. Muito longe de qualquer insurgência nazista de uma raça pura, no caso, a utopia antevê o que vem hoje se realizando em termos de reprodução assistida e engenharia genética. 




A paixão violenta recebe o seguinte tratamento: “Quando um indivíduo se apaixona violentamente por uma mulher, permitem-lhe os colóquios, divertimentos e recíprocos presentes de flores e de poesias“.

Não há desprezo à paixão, esta recebe o tratamento permissivo, direcionado ao compreendido como manifesto de amor, mediante agrados recíprocos, amizade e concupiscência. Compreendam-se, pois, inclusos, os apetites sexuais.

 Apenas há ressalva de que o amor não possa ameaçar a geração. Na hipótese de incompatibilidade de vínculos reprodutivos dos apaixonados, poderiam estes se unir, se a mulher já se encontrasse grávida de outro pai ou se fosse estéril. A maternidade é sagrada e assim também o amor, mas tudo observa um compromisso responsável.


Assim, a Cidade do Sol é a conquista do bem comum assegurando a sociedade.

Não obstante, é possível romper com a noção coletiva projetada nesta utopia, onde muito se interpreta que há renúncia de todo interesse particular em nome da civilidade, ou seja, não é por conta do despojamento da propriedade, da herança e do amor-próprio que se pode concluir um indivíduo simplesmente subserviente em sua vida “solar”.

O homem solar, quer dizer, o indivíduo na Cidade do Sol, não só é livre de toda mesquinharia residual das posses características das organizações humanas, como também nasce exposto a um ambiente permitente de experiências abertas a um conhecimento de si e do mundo, jamais posto em prática quer no meio tomado pelo conservadorismo medieval no acinte renascentista, quer nos movimentos libertários do século XX e sequer cogitado pelo subjetivismo individualista do mundo pós-moderno.

Tomás Campanella com filosofia e sensibilidade, preso por vinte e sete anos, concebeu um dos indivíduos racionais mais livres da face da terra, sem desprezar nenhum conteúdo da riqueza humana em natureza, arte, ciência e mesmo religião, num belo jogo disposto em sete círculos estrategicamente organizados para multiplicar a proteção de tão precioso sonho.

Jussara Paschoini





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