Quando se
pensa na antiguidade ou no passado é mesmo lógico que nos orgulhemos das
glórias conhecidas e das ignorâncias superadas. É bom notar, porém, com certa
poesia que o ser humano do passado, sem qualquer instrumento, sem qualquer
facilidade, com muito pouco ao alcance das mãos não foi apenas a base
fundamental de tudo que temos na atualidade, mas contava com uma percepção da
realidade inevitavelmente muito mais acurada, impossível, repita-se, impossível
para o homem moderno.
Aliás,
raízes científicas e culturais de valor, como o atomismo, o próprio direito romano
e a bíblia, se encontram no período histórico de milênios atrás, não sendo
incongruente dizer ter havido um hiato permeado por espasmos elucubradores
entre a antiguidade propriamente dita e a modernidade. Muito tempo transcorreu
e gerações se sucederam para interpretar e desvendar os frutos plantados pela
pura percepção dos antigos.
Então, ao
lançar olhos para o individualismo e a liberdade propostos pela meta presente
graças aos avanços de toda a gama de pensamento simplificada e acessível nos
veículos de comunicação em massa sem perder o valor de tão grandiosa evolução, se aponta
para a capacitação humana no resguardo da autonomia e na consequente prática da
solidariedade.
Não passa de
sofisma compreender o indivíduo autônomo como ser isolado, mas nem por isso o antagonismo
necessário ou mesmo acidental relacionando a heteronomia sutil das construções
sociais típicas da fugacidade dos caprichos de consumo torna dispensável que se
desenvolva o mais rápido possível, um importante compromisso coletivo,
essencialmente para legitimar e tornar sólidos novos e mais bem estruturados
vínculos.
A conquista
do individualismo é hoje uma sobra de guerra cuja administração demanda muita
força e requinte e isso significa validar potencias individuais a serviço do
amor que une para a realização do bem comum, o sagrado ao convívio humano de
qualidade.
Nesse
terreno, é sublime suspender o confronto de valores e observar
despretensiosamente o confronto de ações.
Uma
simplificação característica à tal intento pode ser encontrada em que já se
teve informação de escritores de considerável nível ou pessoas com grande
capacidade intelectual que passaram certos períodos de suas vidas em profissões
que não dependem de muito raciocínio ou até não o manipulam tanto: vigilância condominial, varredura de rua etc., isso
para não contar o fato de que a grandiosa arquitetura nada seria sem o antigo
suor dos escravos e a atual disposição e capricho dos pedreiros.
Mais-valia à
parte, a constituição física de quem provém do trabalho braçal é comprovada no
sucesso esportivo de regra marcado pela presença de indivíduos das classes
menos favorecidas pelas facilidades do capital e, a forma e resistência dos
trabalhadores de rua muitas vezes superam clara e visivelmente os esforços
quase religiosos de fisiculturistas anabolizados frequentes nas academias de
ginástica.
É mesmo com
esta visão vulgar ao requinte cabível a cada um, que possível se torna divisar
o padrão de comportamento da regra com a finalidade de constatar que corrupção
e burrice reiterados e registrados, não é mais o Estado o grande opressor da
liberdade e do bem comum paralelo, mas o padrão de comportamento e a falta de
compromisso decorrente das constantes e pouco significativas inovações de todo o
tipo, o sustentáculo da precariedade institucional, inclusive e principalmente
privada.
Note-se de
passagem a mutualidade do público e do privado nos jogos do poder a que todos se submetem diariamente.
Não é que
Givenchy e congêneres não tenham arte ou mérito ao criar ícones de moda
acessíveis ao uso de diminuta parcela do globo terrestre, é que andar bem
vestido é só uma parte do cabível em termos do convívio e desafio inerente ao
humano.
Fato é que
já existe declaração de direitos humanos, um sem número de leis e tratados
cumpridos e por cumprir e o contingente populacional crescente se dedica a manter
e criar padrões tão ou mais escravos do que qualquer decreto. O resultado são
indivíduos supostamente livres, supostamente bem alimentados, supostamente
belos, supostamente informados, supostamente ricos e estupidamente infelizes.
Neste
contexto é conveniente invocar o grande cientista social Durkheim, apesar de
este haver atuado a serviço do exercício da autoridade econômica e da imposição
de disciplina social rígida. Houve por parte do estudioso investigação pormenor da
questão do suicídio como uma decorrência “normal”, um típico acidente da vida
em sociedade, vez que para ele o homem era produto desta, a sociedade.
Durkheim
fala em suicídio egoísta, altruísta e anômico sendo o primeiro decorrente da
apatia e da falta de vínculos, o segundo oriundo da força e da paixão heroica e
o terceiro da decepção ou das desproporções entre as aspirações e as
satisfações. É bastante visível que os padrões de suicídio aí observados possam
transpassar e incorporar as transgressões do individuo contra a vida dos
semelhantes também.
Ainda segundo
Durkheim, o amor social produz os deuses de que necessitam os homens, os
fenômenos sagrados e profanos, o respeito o devotamento e a adoração e com ele
o fervor e exaltação da vida coletiva. Não deixa de ser verdade, mas o amor sem
realização é mera potência e se sacrificar o indivíduo, continua a ser
violência, circunstância para se perceber e trabalhar com todas as ferramentas
disponíveis à vida num sentido particular mais independente do padrão e mais
solidariamente dedicado ao coletivo.
Trocando em
miúdos o ser humano padrão, poderia visualizar a troca conceitual pelo ser
humano exemplar tanto ao manifestar reflexão quanto ao manifestar ação,
conforme for a aptidão de suas escolhas e os compromissos que fizer e pelos
quais responderá por própria vontade, deixando de servir, por conseguinte, à fome
hierárquica da cadeia alimentar e passando a cooperar com o semelhante digna e igualmente
comprometido.
A morte é
mesmo uma constante na equação da vida e não fosse ela outras contradições
limitariam diversas propostas evolutivas. Não há sujeito vivo sem renúncia e a
arte ou o trabalho têm essa medida tensora para manter e renovar afetos e interesses,
individuais e coletivos.
A questão
entre o padrão e a regra é justamente não relaxar tal tensão a favor tanto da
autonomia quanto do convívio, ambos fundamentais na relação entre a vontade, a
decisão e a ação vital.
As partes
constroem mesmo o todo e a qualidade da parede depende dos tijolos e da liga, simples
assim.
Jussara Paschoini