segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A CONVIVÊNCIA COM A FÉ E O LIMITE DO SAGRADO


Não existe vida sem fé. Quem disse que estamos vivos? Por que? Não estamos mortos? Estamos vivos? Por que?

Se há respostas é porque há fé, e, se nos detivermos a encontrar definição para isso, é a disposição natural para buscar exteriormente diversos tipos de satisfação, tendendo a evoluir dos mais elementares anseios para elaboração de entendimentos relativos às mais complexas questões. Remove montanhas!

Entendida a fé nesta simples acepção, é possível então confrontá-la com a similar, a crença que pode ser concebida então como uma fé que ultrapassou a disposição e foi concluída numa satisfação suficiente a determinar seu fim e a se estabelecer com forte convicção fixando significados e valores básicos a novos anseios ou definitivos.

A crença no azul como azul o torna diferente do vermelho e quem compreende o vermelho como azul ou é daltônico ou desconhece a cor do céu, pelo menos, se não se tratar de um possível e esplendoroso por do sol ou nascer do sol, aliás, amarelo ou branco?

Não fosse a fé não haveria crença e não fosse a crença não haveriam variáveis. Esta sucedânea é imponente da condição contraditória pertinente a graduar a vida entre o estado vegetativo e outros estados mais conscientes e avançados, portanto relegar a fé ou ignorar a crença é resolver a morte no nascimento e vice-versa.

Dito isso, fica bastante clara a importância da religião não só como elemento da cultura, mas como fonte intrincada na evolução humana, um requinte da atividade moral na sagração de experiências válidas diante dos trágicos contextos da existência, e mesmo a descrença desenvolve suas próprias sagrações.

Do ponto de vista etimológico a religião como conhecida, principalmente no mundo monoteísta ocidental predominante, é palavra derivada do latim “religare”, significando voltar a ligar, mais profundamente, estabelecer vínculo renovado em ação inteligente e eletiva.

Uma visão racional e simples pode compreender a religião como a organização e sagração de símbolos destinados a receber a fé e manter ou desenvolver a crença segundo modelos rituais de comportamento fixos entre humanos de propósitos identificados.




Ser ateu é religião! Não concorda? Tudo bem, mas note-se então que mesmo a descrença exige símbolos, ainda que negativos e a demanda de métodos para negar o que predomina pode exigir muito mais disciplina do que para aceitar. O ritual ateu é a negação e o treino para a prática moral sem o sagrado, mesmo encontrando identidade no que de bom eleger e no que de mal evitar. Haverá assim o ateu requintado, o ateu medíocre e o ateu sociopata, à exemplo de qualquer religioso a ser negado.

Pouco se compara ao ódio disseminado pelas religiões porque o sagrado geralmente é ideal e se compreende mais valoroso ao supremo e, portanto legitima a destruição do que se lhe opõe para realizar o objetivo de sagrar-se definitivamente e eis o limite, o fim da fé e o fim da crença, na medida em que satisfeita a disposição e determinado o símbolo, resta o céu azul em dia de chuva e não há mais esplendor na espera da morte.

O limite do sagrado é não ser definitivo e nem determinado ao ponto de ser único, caso contrário o sub-animal poderá matar pelo que acredita, fato evidentemente abaixo de qualquer instinto rasteiro na tradução de uma submissão religada aos vermes, porque outra não é a justificativa da barbárie religiosa do que a fome de miseráveis chefiados por glutões guerreiros donos da verdade numa aldeia pagã onde se dissemina infecção mortal.

Exemplo inarredável disso é o torneio político engendrado por Roma ao tornar o cristianismo a religião oficial no ano de 380/DC, estabelecendo-a ainda como a única permitida em 392/DC e ao fundar o cesaropapismo com a constituição do Império Bizantino, em verdade, a pedra lançada com a igreja Católica, Apostólica Romana como o que restou daquele poder absoluto, para já no ano de 800/DC, Carlos Magno travar a defesa armamentícia da igreja, no que mais tarde se transformou nas Cruzadas, o jogo político e comercial consagrador da fé sanguinária e reflexo vívido da ganância santificada para a destruição.

Alvo desta guerra foram principalmente os turcos muçulmanos que ocupavam entre os séculos XI e XII a Palestina, constituindo entrave ao comércio mediterrâneo e à peregrinação à Terra Santa de Jerusalém enquanto expediente sagrado ao que veio a se constituir como a Ordem dos Cavaleiros Templários, à princípio devotos de São João no pagamento de promessas e penitências.



A Cruzada experimental em 1.096, foi popular, tornou-se conhecida como Cruzada dos Mendigos porque para angariar custos da empreitada armada contra os muçulmanos da Palestina na primeira tentativa de conquistar a Terra Santa, milhares de judeus europeus foram massacrados, sem exclusão de mulheres e crianças no saque imposto ao intento numa das muitas ações antissemitas dos católicos, esta, no caso, amparada pela França e Inglaterra. Os cruzados desta empreitada, após conseguir pilhar e saquear Constantinopla, foram estrategicamente direcionados pelo imperador bizantino à fronteira muçulmana, onde crentes na conquista de uma fortaleza, tiveram o suprimento de água cortado pelos inimigos turcos e morreram a maioria em uma semana, sendo o restante massacrado num ataque de flechas.

Em paralelo a essa sangria bastante estúpida e brutal, ocorreu a verdadeira primeira Cruzada, constituída por nobres cavaleiros do Papa Urbano II, e já dela, após matança indiscriminada dos “pagãos” muçulmanos que em 1.099 resultou o tenebroso reino de Ultramar (Outremer), os quatro Estados Cruzados, : Condado de Edessa, Principado de Antióquia, Condado de Trípoli e Reino de Jerusalém.

A primeira Cruzada confere augúrios à Godofredo de Bulhão e seu irmão Balduíno e foi por ela que o Mar Mediterrâneo se tornou navegável pelos ocidentais e a partir daí 100 anos de domínio temerário, conforme se continuará a contar, se sucederam sustentados por fiéis e mercenários em castelos construídos para poupar os governantes.

Presentes com compensação em feudos e ou rendas, os Cavaleiros Templários e Hospitalários, bem como Teutônicos vindos da Germânia enquanto grupo de guerrilha melhor organizado ao combate que se fizera constante, participavam de um esquema de conciliações e manobras para antagonizar grupos árabes uns contra os outros, tendo como protetor e padroeiro o hoje ainda muito glorificado: São Jorge de Capadócia.

A segunda Cruzada entre 1.147 e 1.149, já demonstrava a caducidade do embate religioso e envolveu na Europa a tomada de Lisboa por combate na Península Ibérica com subjugo dos mouros, mas teve com a atuação de Luiz VII e do Sacro Império um resultado miserável culminante com a primeira perda de Ultramar, o Condado de Edessa.

Em 1.189 a presença do poderoso Sultão Saladino trouxe a terceira Cruzada, a Cruzada dos Reis, posto haver envolvido o Rei da França, Felipe Augusto, o Rei do Sacro-Império Romano –Germânico, Frederico Barba Ruiva e o Rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão.

Barba Ruiva afogou-se na Alícia após atravessar com sucesso o Rio Danúbio, na Ásia Menor.

Felipe e Ricardo Coração de Leão querelaram entre si e Felipe se retirou das Cruzadas, dando margem a que o único rei remanescente no comando “religioso” fizesse a chacina de homens, mulheres e crianças na conquista de Chipre, Acre e Jaffa. No entanto, a batalha tática com Saladino resultou na perda do Reino de Jerusalém, para o qual foi mantido, por acordo firmado em 1.192, o direito à peregrinação e assim, apesar dos pesares, o Ultramar sobreviveu.

A quarta Cruzada opôs uma escuridão à cidade de Constantinopla, é denominada Cruzada Comercial, foi chefiada por Doge Enrico Dandolo e fundou o Reino Latino de Constantinopla, de tal sorte que esse centro comercial importantíssimo, juntamente com Zara, só retornou aos domínios gregos quando quase vencidas as Cruzadas, em 1.261. Essa cruzada travou um abismo entre a igreja ocidental e oriental.

Neste interim houve a Cruzada de Albigense destinada a extirpar o Catarismo enquanto crença em um Deus dual, do bem e do mal e que era defendido por alguns nobres e bispos no sul da França. O embate ganhou forças pela falta de solução diplomática e pelo assassinato de Pierre Castelnau, cujo legado papal foi proponente de acordo destinado a redirecionar conteúdos econômicos sob a forma de tributo à igreja católica, inclusive pela proibição do emprego de judeus nas administrações dos condes e senhores do Languedoque, território feudal onde se assentavam os cátaros.

A legendária Cruzada das Crianças que teria embarcado em 1.212, cinquenta crianças cuja pureza das almas devolveria Jerusalém aos domínios católicos, terminou em que estas morreram doentes no caminho e ou foram vendidas como escravas.

A quinta Cruzada entre 1.228 e 1.250, presidida por André II da Hungria, arrogou-se na conquista de Jerusalém pela imposição de tentar submeter aos domínios católicos o Egito como precedente necessário e muitíssimo interessante e, por incrível que pareça, após recusar diversas ofertas de acordo muçulmano na devolução do Reino de Jerusalém, terminou com derrota dos cruzados e retirada.

Foi Frederico II, imperador do Sacro império, excomungado pelo Papa, quem na sexta Cruzada obteve a posse diplomática de Jerusalém, Belém e Nazaré, por dez anos, sendo certo que em 1.244, os santos locais já haviam sido novamente perdidos.

São Luiz, o Rei Luiz IX, canonizado como tal, foi o condutor da sétima cruzada entre 1.248 e 1.250, também perdeu na tentativa de conquistar o Egito e foi preso e liberto com o pagamento de pesado resgate, mas recuperou o Ultramar, tirando proveito da invasão dos mongóis.

Na oitava cruzada, o Rei Luiz IX (São Luiz) morreu junto com considerável parte da força francesa por conta de uma peste de que foi a mesma acometida, quando se buscava alcançar para combate a cidade norte-africana de Túnis cujo emir se pretendia converter. Somente Felipe, filho do rei sobreviveu para formar um acordo e voltar para ser coroado o rei da França.

A nona Cruzada manteve a intenção de dominar o Egito subjugando Baibars seu sultão mameluco por haver reduzido Jerusalém a uma pequena faixa entre Sidon e Acre. Eduardo I da Inglaterra retornou quando da morte de seu pai Henrique III para assumir o trono, terminado com acordo satisfatório a Baibars a última e mal fadada Cruzada.


A muitíssimo resumida visão das Cruzadas revela que o uso da fé por forças políticas e interesses econômicos não só revelou humanos sanguinários como nada trouxe em termos de religião ou para efeitos cristãos.

A suposta força da cristandade dos Cavaleiros Templários, em verdade terminou como joguete dos poderes mulçumanos antagônicos, os quais, por outro lado, nos 100 anos que mediaram a retomada do Ultramar, se consagraram como “soldados da guerra santa” e até os dias atuais lutam para manter o que acreditam ser sua grande moeda negocial, consagrada como “Terra Santa”, a Palestina, o espaço de descrição bíblica original do hebreu santificado pela morte na cruz da dominação romana, Jesus, o nazareno.

As Cruzadas revelam um trágico jogo onde a fé e a crença muito pouco ou quase nada significaram diante de interesses políticos e econômicos maiores, antecedentes e estrategicamente instituídos para manipular interesses longínquos ao amor e a satisfação instrumentalizados pela religião em sua acepção genuína de fé ou crença.




Não é de admirar então que no século XV em contraposição à igreja Católica Apostólica Romana, surgisse o protestantismo com a fortíssima tônica de separar a igreja e o Estado, num movimento urbano que difundia através da nobreza e com intervenção da imprensa tradutora da Bíblia da linguagem litúrgica para as línguas locais, a liberdade pessoal interpretativa dos dogmas cristãos. 

O protestantismo opõe a fé às segundas intenções das obras católicas e repudia o batismo infantil, afasta a supremacia papal, a oração pelos mortos, a intercessão dos santos, a assunção de Maria e a virgindade perpétua, o culto as imagens e se fixa através de três formas básicas: Luterana, Calvinista e Anglicana.

Destes três ícones protestantes derivaram o que hoje se conhece popularmente como “crentes” , integrantes de religiões cristãs e não católicas opinantes por fundamentos espiritualistas, racionalistas e anabatistas.

O protestantismo espiritualista é mais raro e encontra forte exemplo entre afro-americanos, porque seguem cultos reminiscentes ao protestantismo com distintiva prática mediúnica.

O protestantismo racionalista vislumbra o aspecto econômico capaz não só de libertar o religioso das limitações católicas, mas de encorajar o planejamento e a disciplina ascética no robustecer da liberdade e em prol do ganho econômico.

E o mais expressivo e radical protestantismo é o anabatista que opôs o batismo em adulto como forma de aceitação consciente da crença num ato de conversão perene, resultante da interpretação privada dos textos bíblicos. Os anabatistas foram perseguidos cruelmente tanto pela igreja católica como por outros protestantes, principalmente por sua insubordinação a qualquer autoridade humana, pacifismo e sectarismo da coletividade dirigida pela prática cristã na instituição da igreja como reflexo da vida comunitária.

Os “crentes” são engajados em diversas organizações religiosas com um ou mais fundamentos protestantes integrados que em comum carregam o estigma da fé como sobreposta às obras no alcance da graça divina, manifesta inclusive, no plano material.

Não é que o catolicismo não haja realçado por necessidade mesmo, a prática de um cristianismo menos político ou atento ao exercício do poder intimamente vinculado aos interesses estatais, mas ainda assim, vem traduzindo a maior atração de infiéis renegados do que todas as religiões distintas, tanto as antigas como as modernas. 




A fé, a crença e a religião são simbioses características ao ser humano e muito importantes ao convívio e ao cultivo de qualidades evolutivas.

O sagrado, é possível observar, tem limite e que não seja ele religioso, mas intrínseco, natural, espontâneo e recíproco como o ar que se respira na quantidade certa, incessante e precioso para toda a vida.

Jussara Paschoini


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