Não existe
vida sem fé. Quem disse que estamos vivos? Por que? Não estamos mortos? Estamos
vivos? Por que?
Se há
respostas é porque há fé, e, se nos detivermos a encontrar definição para isso,
é a disposição natural para buscar exteriormente diversos tipos de satisfação,
tendendo a evoluir dos mais elementares anseios para elaboração de
entendimentos relativos às mais complexas questões. Remove montanhas!
Entendida a
fé nesta simples acepção, é possível então confrontá-la com a similar, a crença
que pode ser concebida então como uma fé que ultrapassou a disposição e foi
concluída numa satisfação suficiente a determinar seu fim e a se estabelecer
com forte convicção fixando significados e valores básicos a novos anseios ou
definitivos.
A crença no
azul como azul o torna diferente do vermelho e quem compreende o vermelho como
azul ou é daltônico ou desconhece a cor do céu, pelo menos, se não se tratar de um possível e esplendoroso
por do sol ou nascer do sol, aliás, amarelo ou branco?
Não fosse a
fé não haveria crença e não fosse a crença não haveriam variáveis. Esta sucedânea
é imponente da condição contraditória pertinente a graduar a vida entre o
estado vegetativo e outros estados mais conscientes e avançados, portanto
relegar a fé ou ignorar a crença é resolver a morte no nascimento e vice-versa.
Dito isso,
fica bastante clara a importância da religião não só como elemento da cultura,
mas como fonte intrincada na evolução humana, um requinte da atividade moral na
sagração de experiências válidas diante dos trágicos contextos da existência, e
mesmo a descrença desenvolve suas próprias sagrações.
Do ponto de
vista etimológico a religião como conhecida, principalmente no mundo monoteísta
ocidental predominante, é palavra derivada do latim “religare”, significando
voltar a ligar, mais profundamente, estabelecer vínculo renovado em ação
inteligente e eletiva.
Uma visão
racional e simples pode compreender a religião como a organização e sagração de
símbolos destinados a receber a fé e manter ou desenvolver a crença segundo
modelos rituais de comportamento fixos entre humanos de propósitos
identificados.
Ser ateu é
religião! Não concorda? Tudo bem, mas note-se então que mesmo a descrença exige
símbolos, ainda que negativos e a demanda de métodos para negar o que
predomina pode exigir muito mais disciplina do que para aceitar. O ritual ateu
é a negação e o treino para a prática moral sem o sagrado, mesmo encontrando
identidade no que de bom eleger e no que de mal evitar. Haverá assim o ateu
requintado, o ateu medíocre e o ateu sociopata, à exemplo de qualquer religioso
a ser negado.
Pouco se
compara ao ódio disseminado pelas religiões porque o sagrado geralmente é ideal
e se compreende mais valoroso ao supremo e, portanto legitima a destruição do
que se lhe opõe para realizar o objetivo de sagrar-se definitivamente e eis o
limite, o fim da fé e o fim da crença, na medida em que satisfeita a disposição
e determinado o símbolo, resta o céu azul em dia de chuva e não há mais
esplendor na espera da morte.
O limite do
sagrado é não ser definitivo e nem determinado ao ponto de ser único, caso
contrário o sub-animal poderá matar pelo que acredita, fato evidentemente
abaixo de qualquer instinto rasteiro na tradução de uma submissão religada aos
vermes, porque outra não é a justificativa da barbárie religiosa do que a fome
de miseráveis chefiados por glutões guerreiros donos da verdade numa aldeia
pagã onde se dissemina infecção mortal.
Exemplo
inarredável disso é o torneio político engendrado por Roma ao tornar o cristianismo
a religião oficial no ano de 380/DC, estabelecendo-a ainda como a única
permitida em 392/DC e ao fundar o cesaropapismo com a constituição do Império Bizantino,
em verdade, a pedra lançada com a igreja Católica, Apostólica Romana como o que
restou daquele poder absoluto, para já no ano de 800/DC, Carlos Magno travar a
defesa armamentícia da igreja, no que mais tarde se transformou nas Cruzadas, o
jogo político e comercial consagrador da fé sanguinária e reflexo vívido da
ganância santificada para a destruição.
Alvo desta
guerra foram principalmente os turcos muçulmanos que ocupavam entre os séculos
XI e XII a Palestina, constituindo entrave ao comércio mediterrâneo e à
peregrinação à Terra Santa de Jerusalém enquanto expediente sagrado ao que veio
a se constituir como a Ordem dos Cavaleiros Templários, à princípio devotos de
São João no pagamento de promessas e penitências.
A Cruzada
experimental em 1.096, foi popular, tornou-se conhecida como Cruzada dos
Mendigos porque para angariar custos da empreitada armada contra os muçulmanos
da Palestina na primeira tentativa de conquistar a Terra Santa, milhares de
judeus europeus foram massacrados, sem exclusão de mulheres e crianças no saque
imposto ao intento numa das muitas ações antissemitas dos católicos, esta, no
caso, amparada pela França e Inglaterra. Os cruzados desta empreitada, após
conseguir pilhar e saquear Constantinopla, foram estrategicamente direcionados
pelo imperador bizantino à fronteira muçulmana, onde crentes na conquista de
uma fortaleza, tiveram o suprimento de água cortado pelos inimigos turcos e
morreram a maioria em uma semana, sendo o restante massacrado num ataque de flechas.
Em paralelo a
essa sangria bastante estúpida e brutal, ocorreu a verdadeira primeira Cruzada,
constituída por nobres cavaleiros do Papa Urbano II, e já dela, após matança
indiscriminada dos “pagãos” muçulmanos que em 1.099 resultou o tenebroso reino
de Ultramar (Outremer), os quatro Estados Cruzados, : Condado de Edessa,
Principado de Antióquia, Condado de Trípoli e Reino de Jerusalém.
A primeira
Cruzada confere augúrios à Godofredo de Bulhão e seu irmão Balduíno e foi por
ela que o Mar Mediterrâneo se tornou navegável pelos ocidentais e a partir daí
100 anos de domínio temerário, conforme se continuará a contar, se sucederam
sustentados por fiéis e mercenários em castelos construídos para poupar os
governantes.
Presentes com
compensação em feudos e ou rendas, os Cavaleiros Templários e Hospitalários,
bem como Teutônicos vindos da Germânia enquanto grupo de guerrilha melhor
organizado ao combate que se fizera constante, participavam de um esquema de
conciliações e manobras para antagonizar grupos árabes uns contra os outros,
tendo como protetor e padroeiro o hoje ainda muito glorificado: São Jorge de
Capadócia.
A segunda
Cruzada entre 1.147 e 1.149, já demonstrava a caducidade do embate religioso e
envolveu na Europa a tomada de Lisboa por combate na Península Ibérica com
subjugo dos mouros, mas teve com a atuação de Luiz VII e do Sacro Império um
resultado miserável culminante com a primeira perda de Ultramar, o Condado de
Edessa.
Em 1.189 a
presença do poderoso Sultão Saladino trouxe a terceira Cruzada, a Cruzada dos
Reis, posto haver envolvido o Rei da França, Felipe Augusto, o Rei do
Sacro-Império Romano –Germânico, Frederico Barba Ruiva e o Rei da Inglaterra,
Ricardo Coração de Leão.
Barba Ruiva
afogou-se na Alícia após atravessar com sucesso o Rio Danúbio, na Ásia Menor.
Felipe e
Ricardo Coração de Leão querelaram entre si e Felipe se retirou das Cruzadas,
dando margem a que o único rei remanescente no comando “religioso” fizesse a
chacina de homens, mulheres e crianças na conquista de Chipre, Acre e Jaffa. No
entanto, a batalha tática com Saladino resultou na perda do Reino de Jerusalém,
para o qual foi mantido, por acordo firmado em 1.192, o direito à peregrinação
e assim, apesar dos pesares, o Ultramar sobreviveu.
A quarta
Cruzada opôs uma escuridão à cidade de Constantinopla, é denominada Cruzada
Comercial, foi chefiada por Doge Enrico Dandolo e fundou o Reino Latino de
Constantinopla, de tal sorte que esse centro comercial importantíssimo,
juntamente com Zara, só retornou aos domínios gregos quando quase vencidas as
Cruzadas, em 1.261. Essa cruzada travou um abismo entre a igreja ocidental e
oriental.
Neste interim
houve a Cruzada de Albigense destinada a extirpar o Catarismo enquanto crença
em um Deus dual, do bem e do mal e que era defendido por alguns nobres e bispos
no sul da França. O embate ganhou forças pela falta de solução diplomática e
pelo assassinato de Pierre Castelnau, cujo legado papal foi proponente de
acordo destinado a redirecionar conteúdos econômicos sob a forma de tributo à
igreja católica, inclusive pela proibição do emprego de judeus nas
administrações dos condes e senhores do Languedoque, território feudal onde se
assentavam os cátaros.
A legendária Cruzada
das Crianças que teria embarcado em 1.212, cinquenta crianças cuja pureza das
almas devolveria Jerusalém aos domínios católicos, terminou em que estas
morreram doentes no caminho e ou foram vendidas como escravas.
A quinta
Cruzada entre 1.228 e 1.250, presidida por André II da Hungria, arrogou-se na
conquista de Jerusalém pela imposição de tentar submeter aos domínios católicos
o Egito como precedente necessário e muitíssimo interessante e, por incrível
que pareça, após recusar diversas ofertas de acordo muçulmano na devolução do
Reino de Jerusalém, terminou com derrota dos cruzados e retirada.
Foi Frederico
II, imperador do Sacro império, excomungado pelo Papa, quem na sexta Cruzada
obteve a posse diplomática de Jerusalém, Belém e Nazaré, por dez anos, sendo
certo que em 1.244, os santos locais já haviam sido novamente perdidos.
São Luiz, o
Rei Luiz IX, canonizado como tal, foi o condutor da sétima cruzada entre 1.248
e 1.250, também perdeu na tentativa de conquistar o Egito e foi preso e liberto
com o pagamento de pesado resgate, mas recuperou o Ultramar, tirando proveito
da invasão dos mongóis.
Na oitava
cruzada, o Rei Luiz IX (São Luiz) morreu junto com considerável parte da força
francesa por conta de uma peste de que foi a mesma acometida, quando se buscava
alcançar para combate a cidade norte-africana de Túnis cujo emir se pretendia
converter. Somente Felipe, filho do rei sobreviveu para formar um acordo e
voltar para ser coroado o rei da França.
A nona
Cruzada manteve a intenção de dominar o Egito subjugando Baibars seu sultão
mameluco por haver reduzido Jerusalém a uma pequena faixa entre Sidon e Acre.
Eduardo I da Inglaterra retornou quando da morte de seu pai Henrique III para
assumir o trono, terminado com acordo satisfatório a Baibars a última e mal
fadada Cruzada.
A muitíssimo
resumida visão das Cruzadas revela que o uso da fé por forças políticas e
interesses econômicos não só revelou humanos sanguinários como nada trouxe em
termos de religião ou para efeitos cristãos.
A suposta
força da cristandade dos Cavaleiros Templários, em verdade terminou como
joguete dos poderes mulçumanos antagônicos, os quais, por outro lado, nos 100
anos que mediaram a retomada do Ultramar, se consagraram como “soldados da
guerra santa” e até os dias atuais lutam para manter o que acreditam ser sua
grande moeda negocial, consagrada como “Terra Santa”, a Palestina, o espaço de
descrição bíblica original do hebreu santificado pela morte na cruz da
dominação romana, Jesus, o nazareno.
As Cruzadas
revelam um trágico jogo onde a fé e a crença muito pouco ou quase nada
significaram diante de interesses políticos e econômicos maiores, antecedentes
e estrategicamente instituídos para manipular interesses longínquos ao amor e a
satisfação instrumentalizados pela religião em sua acepção genuína de fé ou
crença.
Não é de
admirar então que no século XV em contraposição à igreja Católica Apostólica Romana,
surgisse o protestantismo com a fortíssima tônica de separar a igreja e o
Estado, num movimento urbano que difundia através da nobreza e com intervenção
da imprensa tradutora da Bíblia da linguagem litúrgica para as línguas locais, a
liberdade pessoal interpretativa dos dogmas cristãos.
O
protestantismo opõe a fé às segundas intenções das obras católicas e repudia o
batismo infantil, afasta a supremacia papal, a oração pelos mortos, a
intercessão dos santos, a assunção de Maria e a virgindade perpétua, o culto as
imagens e se fixa através de três formas básicas: Luterana, Calvinista e
Anglicana.
Destes três
ícones protestantes derivaram o que hoje se conhece popularmente como “crentes”
, integrantes de religiões cristãs e não católicas opinantes por fundamentos
espiritualistas, racionalistas e anabatistas.
O
protestantismo espiritualista é mais raro e encontra forte exemplo entre
afro-americanos, porque seguem cultos reminiscentes ao protestantismo com
distintiva prática mediúnica.
O
protestantismo racionalista vislumbra o aspecto econômico capaz não só de
libertar o religioso das limitações católicas, mas de encorajar o planejamento
e a disciplina ascética no robustecer da liberdade e em prol do ganho
econômico.
E o mais expressivo
e radical protestantismo é o anabatista que opôs o batismo em adulto como forma
de aceitação consciente da crença num ato de conversão perene, resultante da
interpretação privada dos textos bíblicos. Os anabatistas foram perseguidos
cruelmente tanto pela igreja católica como por outros protestantes,
principalmente por sua insubordinação a qualquer autoridade humana, pacifismo e sectarismo da coletividade dirigida pela prática cristã na instituição da
igreja como reflexo da vida comunitária.
Os “crentes”
são engajados em diversas organizações religiosas com um ou mais fundamentos
protestantes integrados que em comum carregam o estigma da fé como sobreposta
às obras no alcance da graça divina, manifesta inclusive, no plano material.
Não é que o
catolicismo não haja realçado por necessidade mesmo, a prática de um
cristianismo menos político ou atento ao exercício do poder intimamente
vinculado aos interesses estatais, mas ainda assim, vem traduzindo a maior
atração de infiéis renegados do que todas as religiões distintas, tanto as
antigas como as modernas.
A fé, a
crença e a religião são simbioses características ao ser humano e muito
importantes ao convívio e ao cultivo de qualidades evolutivas.
O sagrado, é
possível observar, tem limite e que não seja ele religioso, mas intrínseco,
natural, espontâneo e recíproco como o ar que se respira na quantidade certa,
incessante e precioso para toda a vida.
Jussara Paschoini
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