Não é incomum
que notemos nos antigos opositores das ditaduras algumas falácias saudosistas
no tocante aos alvos que combateram, afinal, se destacaram por eles, ganharam
mundo por serem diferentes deles e tiveram ainda o mérito de sobreviver a eles,
em suma, muito ou quase tudo, aparentemente, devem aos seus algozes.
Nos dias atuais
em que o alvo não é mais tão definido porque o autoritarismo ganhou
camuflagens, principalmente por parte de combatentes engendrados no uso de
potenciais de combate similares em covardia, como transcorre no terrorismo, o
referencial não é mais tão preciso e nem o antagonismo tão heroico, obviamente,
e não há mais tanta certeza acerca do lado ao qual se deve estar.
A incerteza é
despertadora da autopreservação e esta dita as regras conforme os diferentes
graus de ameaça que se enfrentar individualmente, tanto diante das necessidades
de escolha quanto diante da falta desta.
Confrontar o
ser e o dever ser, o impulso e a ordem é atributo da consciência e como tal não
pode sofrer aprisionamento pelo medo, o que diante do quadro de indefinições e
similaridades estrategicamente posicionadas no exercício das políticas de
dominação sofisticadas, vem ocasionando duas variáveis de conduta: uma de total
indiferença e outra de apego excessivo e obstinado às diferenças do tipo
majoritárias, aliás, consagradas na prática democrática, onde estas prevalecem.
Abro um
parêntese para lembrar que em poucas inserções em estudos diplomáticos de
relevo, foi possível já há muitos anos acusar tal “ditadura da maioria”.
O quadro
democrático tem o efeito colateral de, por vezes e por meios obscuros,
tiranizar as minorias, independentemente de violência, embora não a exclua de
suas práticas, e daí a reação enérgica do antagonismo similar nas divergências
de toda a ordem.
Nesse contexto
de inúmeras ambiguidades e conflitos o fato é que nunca vai deixar de haver a
necessidade de interação entre o humano e o mundo em que habita e desta, a
noção acerca do que e quanto em si e no ambiente merece ser modificado como
fruto de um ato de coragem na garantia de uma escolha ou como tolerância no
reconhecimento de valores maiores.
Há uma frase de
Jean Paul Sartre que diz: “É preciso ter coragem de fazer como todo mundo para
não ser como ninguém”, isso significa que o filósofo media atitudes com relação
aos outros, mas devia a si sua própria forma de ser por um ato de coragem. Não
que isso contrarie o medo, mas seja então o seu enfrentamento e sua resistência.
A tolerância por
sua vez não fica adstrita ao relativismo de “dançar conforme a música” exige
referência na medida em que o intolerável existe do outro para com o outro
como reinvindicação de uma autoridade crítica e, portanto, ética.
A ética
enquanto ciência da conduta ou derivado de ethos, o caráter, investiga valores
em sua acepção prática para estabelecer fundamentos mais próximos o possível de
uma verdade capaz de ser reconhecida pelo maior número possível de indivíduos e
é, portanto, um resultado a ser considerado acerca da coragem e da tolerância
no universo das múltiplas formas de pensar e agir.
É por ética
então que se podem vislumbrar os limites das liberdades em outras liberdades, o
que significa ampla tolerância ao pensamento e à expressão, até porque esta
esfera admite proporcional método de oposição pela reflexão e manifestação
adversa.
O dilema surge
quando as ações confrontarem as liberdades, deixando a esfera do pensamento e
da expressão para agredir e violentar a vida e integridade física ou moral de
outros, excedendo, pois, o limite da intolerância cabível a qualquer diferença
para se ativar ou se arrogar em verdade maior ou única, imponente a qualquer
custo.
Há duas percepções
quanto à condenação ética das verdades dependentes de imponência absoluta, uma,
são livres ao pensamento e expressão, mesmo porque a oposição coercitiva só vai
potencializá-las ao exercício de se estabelecer também por coação legitimada em
contrapartida, outra, devem ser coibidas como crime sempre que ultrapassarem a
liberdade que lhes cabe para ameaçar outras liberdades com ataques à vida ou à
integridade física ou moral reclamada por quem de direito.
A coragem do
individuo e a tolerância no mundo social são os pesos da avaliação ética a se
ativar a favor tanto da maioria estabelecida no exercício democrático quanto da
minoria a quem todo respeito e liberdade compatíveis são devidos, inclusive
pela defesa inarredável das diferenças de todo o gênero, considerando mesmo
serem as versões absolutistas de conduta e os extremos de desigualdade, seja
ela religiosa, racial, política, econômica ou filosófica, tendentes naturais à
autodestruição.
Não é possível
impedir o pensamento nazista de carecas arrogantes e nem a predominância de
bonecas loiras de olhos azuis, mas o resultado ético dessa presença no mundo,
certamente continuará a ser impeditivo para que qualquer outra violência da
espécie seja cometida inadvertida e impunemente, circunstância muito além de
celas e castigos, claramente visível na reversão vitimista das atuais
ressurgentes pseudo-organizações esgueiradas em ativismo criminoso, bem mais
vexatórias do que qualquer “casa de tolerância” ou “cartel de drogas”.
Do mesmo modo,
a fome e a ignorância são desafios mantidos como reflexo hipócrita das
ideologias de combate mais preocupadas em fazer e manter inimigos do que
ocupadas com verdadeiras finalidades humanísticas, querendo isso dizer que
menos papel e luxo diplomático na discussão das armas já poderiam, há muito, terem
se convertido na aplicação de preceitos conciliadores na difusão das práticas
solidárias aos nascidos sob absoluta escuridão.
É mais
importante fortalecer boas raízes do que se empenhar em podas desordenadas de
galhos vivos, porque quem morre na guerra são os jovens e os pobres, muitas
vezes vítimas que respeitam seus carrascos, como também bem assinalou Sartre.
Jussara Paschoini
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