A lealdade
juridicamente falando trata mais do desleal, ou seja, a lei visa condutas que
possa repreender em termos de tentativa de apropriação das criações alheias,
notadamente as de valor comercial, as que fidelizam a clientela mediante meios
ou instrumentais dolosamente articulados tal como a reprodução indevida de
marcas, embalagens e produtos. São inúmeras as condutas que se tonalizam no sentido de tolher
a personalidade comercial, sua caracterização, contudo, além de depender de
evidente intenção, está virtualmente vinculada à amplitude e importância dessa
personalidade. A lealdade ao alcance da lei, do ponto de vista concreto, é uma
hierarquia que se busca garantir a quem conquistou especificamente uma presença
mercadológica.
Diferentemente,
no campo das relações pessoais, especificamente do direito familiar a
fidelidade é obrigação cujo descumprimento caracteriza culpa na eventual
ruptura de vínculos, com consequências que vão desde a perda do direito de
assistência ou pensão alimentícia do cônjuge até outros prejuízos previstos ou não em
pacto antenupcial para os regimes de separação ou comunhão universal de bens.
Lealdade e
fidelidade são conceitos jurídicos destinados a coibir condutas adversas, donde
perceptível se faz na prática a hierarquização de personalidades dotadas por
princípio desses valores, para a primeira o relevo comercial, para a segunda a
intenção de constituir família e laços de dependência.
Fora da
concreticidade e dos detalhes certamente cabíveis nos meandres exegéticos dos
dois conceitos, é interessante observar que não obstante a proximidade
simbólica entre lealdade e fidelidade, ao ponto de os léxicos adotarem-lhes
como sinônimo uma da outra, na vida civil, ambas dividem compartimentos absolutamente
diferentes, porque, a lealdade é parâmetro da livre concorrência e abriga-se no
florescimento de uma ordem de personalidade notável, enquanto a fidelidade é
parâmetro de garantia impositiva diante da antevisão de dependência
materializada em dever.
O fundamento da
lealdade é a independência e o fundamento da fidelidade é justamente o
contrário.
Assim é que lançando
o olhar mais uma vez para a sábia construção de diferenças muitas vezes
cristalizadas pela lei, quando os legisladores eram manifestos da sociedade em
que viviam e os julgadores eram ocupados intérpretes, nem tanto abalados pelo
impositivo da igualdade e nem tanto afetados pela ordem econômica, lealdade
nada têm a ver com fidelidade por uma questão de finalidade ou mais de
intenção, embora pertençam ao terreno das distinções personalíssimas.
Enquanto
distinções personalíssimas lealdade e fidelidade compõem protetivo de
dignidade, divisando reconhecimento e reverência respectivamente.
E eis o porquê
de a despatrimonialização da família, enquanto doutrina com vistas à
sobreposição dos laços afetivos característicos dos anseios hodiernos de
correlata realização demandar a possível redefinição do dever de fidelidade
matrimonial, primeiro imposto pelo artigo 1.566 do Código Civil, pelo dever de
lealdade, o que significa modificar diametralmente o escopo associativo
caraterizador da família, admitindo ralações de fato independentes e que possam
também originar o dever de sustentação, guarda e educação de filhos, além de legitimar outras e diversas formas de manifestação de vontade, mesmo que tal venha a ser feito com base em diploma legal outro e específico.
A situação
legal e jurisprudencial da proteção ao ente familiar enquanto base da
sociedade, conforme a Constituição Federal vêm se dirigindo a alcovitar
praticamente toda e qualquer relação, o que inclui o namoro por tempo
prolongado, no instituto dos esponsais ou noivado, por exemplo, a gerar o dever de indenizar
material e moralmente na hipótese de ruptura.
Com a ampliação certificada
do casamento, além da já corrente transmutação das sociedades de fato ou concubinárias, questionamentos constitucionais à parte, a
deslealdade pode levar a juízo até mesmo a coabitação de amigos e amigas que
haverão de fazer prova de não manter relacionamento íntimo para descaracterizar
deveres matrimoniais típicos da dependência associativa! É preciso estabelecer um ponto de interrogação ao lado das respostas prematuras e dar ensejo a uma visão acerca do conveniente cansaço de quem quer eximir-se da vida com boas razões de apego a si próprio, casando ou articulando casar.
É necessário
perceber que a superimposição familiar importa até o momento em que deixa de
contemplar a individualidade para sobrepuja-la e condicioná-la a incongruências
com a vontade, chegando ao cúmulo de produzir vício jurídico, significando isso
o reiterado equívoco de elevar a presunção à categoria de verdade num fenômeno terrível e dissociado da realidade, porém passível à ampla produção de efeitos.
A independência
pode e deve ser reconhecida pela lei e protegida contra atos desleais, não
apenas quando se tratar de salvaguardar personalidades economicamente relevantes,
mas quando se tratar da consagração de vontades menos reverentes a uma disposição
moral visivelmente ultrapassada, geradora de insatisfações e suspeitas, quando
não de lamentáveis condutas delituosas.
Reste claro que
não se trata de refutar a mantença, mas de abrir exceção à liberdade,
considerando a irregular desordem que vem permeando relacionamentos
individuais, cedendo espaço para disposições e vontades francas, menos
tradicionais a quem floresce também a lealdade em manifestação espontânea de
afeto, muitas vezes mais integrado e valoroso daquele demandante
de fiéis.
Nesse
diapasão, Nietzsche e sua noção estética do verossímil eleva a lealdade à característica
da amizade que se insurge à altura do profundo de outro ser, cantando vitória
quando o pensamento sucumbe, mostrando a beleza inexequível para toda a vontade
violenta, falando nos passos do homem, colocando olhares e mãos no lugar dos
juramentos, desmerecendo a virtude dos dedos aos quais falta pulso.
Jussara Paschoini
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