segunda-feira, 1 de julho de 2013

MAIS QUE DEVER LEALDADE É DIREITO














A lealdade juridicamente falando trata mais do desleal, ou seja, a lei visa condutas que possa repreender em termos de tentativa de apropriação das criações alheias, notadamente as de valor comercial, as que fidelizam a clientela mediante meios ou instrumentais dolosamente articulados tal como a reprodução indevida de marcas, embalagens e produtos. São inúmeras as condutas que se tonalizam no sentido de tolher a personalidade comercial, sua caracterização, contudo, além de depender de evidente intenção, está virtualmente vinculada à amplitude e importância dessa personalidade. A lealdade ao alcance da lei, do ponto de vista concreto, é uma hierarquia que se busca garantir a quem conquistou especificamente uma presença mercadológica.

Diferentemente, no campo das relações pessoais, especificamente do direito familiar a fidelidade é obrigação cujo descumprimento caracteriza culpa na eventual ruptura de vínculos, com consequências que vão desde a perda do direito de assistência ou pensão alimentícia do cônjuge até outros prejuízos previstos ou não em pacto antenupcial para os regimes de separação ou comunhão universal de bens.

Lealdade e fidelidade são conceitos jurídicos destinados a coibir condutas adversas, donde perceptível se faz na prática a hierarquização de personalidades dotadas por princípio desses valores, para a primeira o relevo comercial, para a segunda a intenção de constituir família e laços de dependência.

Fora da concreticidade e dos detalhes certamente cabíveis nos meandres exegéticos dos dois conceitos, é interessante observar que não obstante a proximidade simbólica entre lealdade e fidelidade, ao ponto de os léxicos adotarem-lhes como sinônimo uma da outra, na vida civil, ambas dividem compartimentos absolutamente diferentes, porque, a lealdade é parâmetro da livre concorrência e abriga-se no florescimento de uma ordem de personalidade notável, enquanto a fidelidade é parâmetro de garantia impositiva diante da antevisão de dependência materializada em dever.

O fundamento da lealdade é a independência e o fundamento da fidelidade é justamente o contrário.

Assim é que lançando o olhar mais uma vez para a sábia construção de diferenças muitas vezes cristalizadas pela lei, quando os legisladores eram manifestos da sociedade em que viviam e os julgadores eram ocupados intérpretes, nem tanto abalados pelo impositivo da igualdade e nem tanto afetados pela ordem econômica, lealdade nada têm a ver com fidelidade por uma questão de finalidade ou mais de intenção, embora pertençam ao terreno das distinções personalíssimas.

Enquanto distinções personalíssimas lealdade e fidelidade compõem protetivo de dignidade, divisando reconhecimento e reverência respectivamente.

E eis o porquê de a despatrimonialização da família, enquanto doutrina com vistas à sobreposição dos laços afetivos característicos dos anseios hodiernos de correlata realização demandar a possível redefinição do dever de fidelidade matrimonial, primeiro imposto pelo artigo 1.566 do Código Civil, pelo dever de lealdade, o que significa modificar diametralmente o escopo associativo caraterizador da família, admitindo ralações de fato independentes e que possam também originar o dever de sustentação, guarda e educação de filhos, além de legitimar outras e diversas formas de manifestação de vontade, mesmo que tal venha a ser feito com base em diploma legal outro e específico.

A situação legal e jurisprudencial da proteção ao ente familiar enquanto base da sociedade, conforme a Constituição Federal vêm se dirigindo a alcovitar praticamente toda e qualquer relação, o que inclui o namoro por tempo prolongado, no instituto dos esponsais ou noivado,  por exemplo, a gerar o dever de indenizar material e moralmente na hipótese de ruptura.

Com a ampliação certificada do casamento, além da já corrente transmutação das sociedades de fato ou concubinárias, questionamentos constitucionais à parte, a deslealdade pode levar a juízo até mesmo a coabitação de amigos e amigas que haverão de fazer prova de não manter relacionamento íntimo para descaracterizar deveres matrimoniais típicos da dependência associativa! É preciso estabelecer um ponto de interrogação ao lado das respostas prematuras e dar ensejo a uma visão acerca do conveniente cansaço de quem quer eximir-se da vida com boas razões de apego a si próprio, casando ou articulando casar.

É necessário perceber que a superimposição familiar importa até o momento em que deixa de contemplar a individualidade para sobrepuja-la e condicioná-la a incongruências com a vontade, chegando ao cúmulo de produzir vício jurídico, significando isso o reiterado equívoco de elevar a presunção à categoria de verdade num fenômeno terrível e dissociado da realidade, porém passível à ampla produção de efeitos. 

A independência pode e deve ser reconhecida pela lei e protegida contra atos desleais, não apenas quando se tratar de salvaguardar personalidades economicamente relevantes, mas quando se tratar da consagração de vontades menos reverentes a uma disposição moral visivelmente ultrapassada, geradora de insatisfações e suspeitas, quando não de lamentáveis condutas delituosas.

Reste claro que não se trata de refutar a mantença, mas de abrir exceção à liberdade, considerando a irregular desordem que vem permeando relacionamentos individuais, cedendo espaço para disposições e vontades francas, menos tradicionais a quem floresce também a lealdade em manifestação espontânea de afeto, muitas vezes mais integrado e valoroso daquele demandante de fiéis.
Nesse diapasão, Nietzsche e sua noção estética do verossímil eleva a lealdade à característica da amizade que se insurge à altura do profundo de outro ser, cantando vitória quando o pensamento sucumbe, mostrando a beleza inexequível para toda a vontade violenta, falando nos passos do homem, colocando olhares e mãos no lugar dos juramentos, desmerecendo a virtude dos dedos aos quais falta pulso.

Jussara Paschoini   



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