segunda-feira, 29 de julho de 2013

O HIATO JURÍDICO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA



A Resolução 2.013 de 2.013, elaborada pelo Conselho Federal de Medicina, mais uma vez buscando amparar e direcionar avanços científicos rumo aos anseios sociais, cuidou de fixar disposições éticas para indicar considerações aplicáveis à reprodução assistida, observando a legitimação das uniões homoafetivas e mesmo a produção independente de solteiros.

Entretanto, o que se depreende das referidas disposições é um corolário de exigências de ordem burocrática e operacional cuja pertinência não alcança a legalidade literalmente empetecada das questões envolventes da legitimação de novos meios e variações na instituição do ente familiar pela basilar concepção de filhos.

A leitura da resolução impõe registro documental pormenorizado de todas as fases da reprodução assistida e alcança determinar linhas estatísticas de resultados de êxito ou não. Tudo notando o consentimento e manifestação de vontade dos interessados, incluindo exigência de “garantia de registro da criança pelos pais genéticos”(providenciada durante a gravidez para a hipótese de doação temporária de útero), no que traduz a plenamente cabível circunstância de o expediente configurar o ímpeto de preservação vinculada à natural disposição humana de perpetuar laços da codificação ribonucleica e desoxirribonucleica.

Inevitável frisar ser a própria assistência reprodutiva voltada à incapacidade de gametas ou de órgãos para a perpetuação natural, seja ela oriunda do parentesco masculino ou feminino, sendo que o último tem referência à capacidade orgânica imprescindível, exclusiva das mulheres, a uterina, donde junto à proibição de fins lucrativos se estabelece a possibilidade de um tipo intercâmbio entre doadoras na partilha de interesses comuns de procriação a ensejar adequações, inclusive de ordem financeira, dentro desta exclusiva finalidade de custos.

Para se tomar em conta uniões homoafetivas, por exemplo, o parentesco genético somente será integralmente possível a ambos integrantes do par em se tratando da utilização de gametas de parentes, analogicamente talvez, aplicando-se os dispositivos da doação de útero enquanto permitente de tal até o quarto grau (mãe, irmã, tia e prima) então e ainda  para o caso, incluindo pai, irmão, tio e primo na doação de gametas sujeita a compatibilidade fenotípica, inclusive.

Aos solteiros ou integrantes de um casal com quadro unilateral de infertilidade ou impossibilidade por homossexualidade face à inadequação da reprodução sexuada com gametas próprios, a participação de um terceiro doador genético é relevante de uma condição juridicamente indefinida, exceto pela expressão de vontade deste doador genérica e obrigatoriamente sigiloso, em contrapartida da intrínseca possibilidade da participação de parentes originalmente conhecidos.

Sem tratamento legal aos vínculos familiares sujeitos à dissociação da totalidade genética do par com interesse conceptivo, a regulamentação trata de exigir a documentação de responsabilidades correlatas por escrito, inclusive impondo a criopreservação de embriões viáveis comunicados como existentes, conforme expressa vontade dos interessados e notando o limite de implante de no máximo quatro embriões (conforme idade da parturiente/até os cinquenta anos). Determina-se também o parâmetro de cinco anos, salvo disposição volitiva contrária, para a opção de descarte ou utilização do embrionário criopreservado em pesquisas de célula tronco, considerando mesmo a proibição de fecundação desvinculada da finalidade reprodutiva e da redução embrionária.

Ao menos uma solução legal simples no sentido de aquilatar a condição do parceiro ou cônjuge desvinculado geneticamente à condição de pai ou mãe adotivo, quando do nascimento com vida do fruto da reprodução assistida com gameta doado, definiria civilmente a questão para todos os fins decorrentes da hereditariedade em direitos e deveres, exceto em se tratando de maternidade ou paternidade de solteiros em condição permitente de registro civil unilateral.  

A dogmática da família tradicional com observância dos vínculos genéticos ou adotivos juridicamente acatados, sem elaboração legal de instrumental diferenciado, vem abrindo margem à positivação de condições que continuam a ser totalmente genéticas ou não, sem tangenciar novos vínculos que embora assemelhados não correspondem propriamente ao processo de adoção dirigido a filiação, o que, por sua vez, faz etéreos e por conseguinte mais questionáveis os efeitos civis aplicáveis.

Nenhum contrato ou certidão altera a genética tangível pelo exame de DNA, cabendo à lei consagrar em face da peculiaridade da instituição de vínculos inovados pelas possibilidades científicas e a evolução da diversidade das relações sócio-afetivas, novos modos de reconhecer seguramente essa realidade a favor de plenas famílias.

Resta claro também que a resolução de cunho ético limita taxativamente a elaboração genética (não permite escolha de sexo e outras variáveis de biótipo) ao mesmo tempo em que trata da possibilidade de previsão de doenças com esta origem em termos da reprodução assistida cuja gestação respectiva não poderá ser interrompida, exceto por autorização legal ou judicial, a primeira sendo inexistente, considerando que o aborto permanece como crime e a segunda impossível pelo mesmo motivo.

Questão também muito interessante diante da intenção legítima à reprodução assistida é a incidental ou acidental constatação de malformação ou defeito genético em gestação já iniciada, como fator de eventual interesse na interrupção da gravidez, haja vistas ao limite de doze semanas pertinente à isenção de riscos bilaterais relevantes para gestante e o conjunto celular concepto.

Numa noção favorável a autonomia de vontade da mulher quanto a tal interrupção é sensato compreender pela manutenção do direito de escolha independentemente de ser assistida ou não a reprodução, sem que isso implique em discriminação pela prevalência da vontade e o uso de meios justos de compatibilização individual igualitária.

Admitir coerentemente a prevalência de uma vontade individual não pode e nem deve ser ativado como consagração desta a título de modelação positiva ou negativa de impositivos sociais porque a existência do Estado visa justamente o contrário. Assim, é de se compreender que resguardada pela ciência condições para opção digna e incólume, justo é o respeito acerca desta opção, livre de qualquer coação ou óbice intervencionista.

Há registro de tribos indígenas com decretos homicidas para um dos nascidos gêmeos num retrato oposto a qualquer liberdade individual dos pais, isso com fundo cultural e meramente supersticioso numa circunstância apta a mensurar extremos da intervenção de normas coletivas em tal seara constitutiva familiar para ponderadamente reconhecer limites racionais de relacionado acatamento.

O Código Civil Brasileiro considera a personalidade jurídica titular de direitos a partir do nascimento com vida, protege a concepção, bem como a autonomia de vontade, a qual, consoante é perceptível, merece ganhar novas atenções legais com o fim de fortalecer renovadas feições e o conteúdo íntimo da dignidade circundante dos naturais ou psíquicos anseios familiares, especialmente maternos, para coerentemente resultar em voluntariedade característica do bem comum.

Jussara Paschoini

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