sábado, 12 de maio de 2012

SOBRE MIM E MAIS UM POUCO


Em outubro do ano passado, comecei com uma dor de estômago muito intensa e pensei: é muita ansiedade nessa vida de profissional liberal, nessa independência feminina forjada na persistência. Depois, já no início de novembro, veio uma sinusite, febre e um mal estar diferente. Antibiótico, antiinflamatório e dipirona e os sintomas regrediram, mas a fraqueza não passava e se iniciou um tipo de desidratação até que o abdome inchou. Corri para o hospital, fiz um monte de exames e nada se revelava para delatar a necessidade de uma intervenção cirúrgica.

Sete dias de internação com febre e dor, quando finalmente, a despeito de qualquer diagnóstico mais preciso, decidiu-se pela laparotomia exploradora, uma abertura vertical na região do abdome para verificar, e se for o caso tratar, alguma irregularidade.

Apendicite retrocecal supurada e infecção instalada com resultante em choque séptico e um estado de coma que durou três dias com 40% de chance de óbito declarada pelos médicos. Não morri, acordei com uma dor que não passava por nada e gritei a noite inteira pedindo analgésicos que simplesmente não funcionavam, acabou com prescrição de derivado de morfina. Três dias depois, já não sentia dor e pedi para diminuírem os analgésicos.

Vinte e cinco dias de UTI, sem comer ou beber água, sem dormir e alucinando com medicamentos, não sei se diminuíram como eu pedi as dosagens analgésicas e era mesmo muito difícil pegar no sono com toda a movimentação mantida no local. Cada sonho paranoico de dar gosto!

Nunca me envergonhei da nudez, sou meio índia nesse sentido, então não corei com os banhos no leito que enfermeiros e enfermeiras vinham me dar, uma vez por dia. Até me comprazia da cantiguinha muitas vezes evangélica dos meus assistentes de banho, porque muitas vezes era o único contato humano do dia, além das visitas de no máximo uma hora, permitidas duas vezes ao dia.
Tinha o pessoal da terapia respiratória, tive derrame pleural...esses vinham até de madrugada e sempre batiam um papinho.

Os equipamentos de medicação endovenosa que serviam também para alimentação começaram a falhar e eu desidratei, fiquei a ponto de implorar para tomar o contraste do exame de tomografia computadorizada prescrito, certa vez, tamanha a secura que eu sentia. Aí instalaram um cateter central no meu pescoço e os diversos líquidos começaram a entrar de novo no meu corpo, regularmente, diminuindo o mal estar.

Drenagem passou a definir o meu corpo que só tinha 22% de gordura graças a alimentação balanceada e uma hora e meia a duas de exercícios por dia, pelo menos cinco vezes por semana.

Nunca tive um corpão, sou de descendência europeia, dos tipos magros e compridos, longe da gostosura típica dos latinos e africanos ou mesmo de certos mega caucasianos, de modo que, há muito já tinha me conformado de não ter uma nádega protuberante e as curvas da estrada de Santos, mas me contentava por ter desenvolvido uma boa resistência física e um tipo físico ao menos tonificado, ajeitadinho, dadas as minhas possibilidades.

Quando finalmente saí da UTI e pude me olhar no espelho, não me desapontei exatamente, porque tinha passado por tanto sofrimento que só de poder sair do pseudo-purgatório, já me dava por satisfeita. Era mesmo assustador, pele e osso, olho e bochechas encovados, para não falar no cabelo duro que nunca foi corretamente lavado nos banhos de leito da UTI. Lavei e pedi para cortar porque estava de causar complexo de superioridade na Mortícia.

Daí, foram mais diversos dias de drenagem corporal e muito antibiótico até a minha alta e só quando voltei para casa comecei a sentir o quanto eu precisava recuperar de uma pessoa que em parte tinha desaparecido, eu mesma não me reconhecia, mas fato é que não podia retomar a vida anterior, nem em termos de alimentação e muito menos em termos de exercício. Não perdi a forma corporal com a qual nasci, perdi o que conquistei com dedicado prazer, perdi minha noção de ser saudável e passei a conviver com noções sustentáveis de mim.

O que eu não esperava, após ter recuperado alguns quilinhos e minha carinha de sempre, fosse eu ser vitimada por sintomas do que mais tarde revelaria uma torção das minhas tripinhas, o tal do volvo, um incidental possível em qualquer pós-operatório abdominal, detectável e tratável por meios cirúrgicos. No meu caso, acabaram sendo duas cirurgias por conta dos reflexos do episódio e da reação dos tecidos envolvidos.

E mais uma vez o corpinho submetido a drenagem, murchei de novo e agora estou a recuperar os quilinhos, com prognóstico de nova cirurgia para solucionar pendências prejudicadas pela complicação acima comentada.

Mantenho pois as condições sustentáveis do que sou, uma pessoa muito ativa sujeita a redução considerável parte do que praticava e era.

Contrariamente do que se possa imaginar não é a vaidade intrínseca a minha condição feminina o que mais me incomoda, mas a imobilidade necessária a recuperação física somada à inevitável depressão de não possuir, ainda que temporariamente, os instrumentos escolhidos para caminhar de acordo comigo mesma, tudo isso atribulado pela crença na oportunidade de descobrir outros caminhos, como se os de antes não me correspondessem! Ora!

Eu não me sinto como alguém que sofreu uma experiência reveladora, um marco extravasante de forças ocultas, embora deva admitir a minha renovada paixão pelas pessoas.

Hoje quero muito mais estar com todo mundo que conheço e conhecer mais o que não conheço, mas não me sinto completa no que sou e não é isso que quero dar de mim, não, pelo menos agora. Preciso sarar, me sentir reintegrada em mim mesma, como eu sou, principalmente por dentro, e ainda não cheguei lá, estou indo devagar e sempre.

Não sei se disse algo que quem me conhece não saiba, porque creio ser muito transparente e sem segredos mas sentia necessidade de registrar em algum momento o meu tempo e modo correntes, resumindo o meu jeito de amar a vida, capaz de permitir ter corrido tanto risco e ter saído com chance e força para recomeçar, renovando a vontade de crescer perto das outras pessoas, trocando preciosidades de cada momento, sem jamais perder de vista o anseio de liberdade, minha palavra e prática preferidas.

Amor é direção para tudo, menos para a prisão.


Jussara Paschoini

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