sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A ESPIRITUALIDADE CANIBAL



A palavra espírito, usualmente se utiliza para significar algum estado ou condição de ser extracorpórea e imaterial algumas e muitas vezes associada ao corpo emocional. Semanticamente tem origem no latim “spiritus” traduzindo-se em respiração ou sopro e corresponde a uma atividade vital por assim dizer.

Quase todas as crenças contemplam o espírito, em maior ou menor grau de abordagem existencial ou definitiva.

É incrível, porém, ter a ideia de que a mais ampla noção de espírito se encontra nas antigas práticas canibais, e antes que se deduza com horror pela conotação psicopática do assunto, é importante notar que os povos praticantes, ao comer a carne do inimigo entendiam absorver-lhe o espírito e isso era quase uma honraria entre guerreiros, não só representava uma alta consideração, mas, a intenção de fazer reviver em si próprio o poder que enfrentara, respeitara e admirara na vida do oponente.

Desejar a força de um oponente é característica da admiração com relação a este, não exatamente daquela que traz descanso nas posses, mas daquela que invade, incomoda, toca profundamente e toma muito mais tempo e atenção de nossas vidas, nos fazendo saltar de nosso ser isolado para o terreno de outros e muitos outros seres.

Não comemos de fato esses outros, mas digerimos suas pessoas, seus atos e modos de ser, de forma mais ou menos agradável e esta é a verdadeira ação de um espírito, ser absorvido por outros, ser semente e força vital de si e também de outros, crescer na mente e no coração de outros e a partir daí o corpo de uns fica o de outros vai, os espíritos são “absorvidos” e vivem disformes em outros corpos com outras histórias, como revela primitivamente a prática canibal quando literalmente pegava, matava e comia. 

Preferir a morte pode perfeitamente ser questão de honra, preterir a vida é que não é e isso significa reconhecer em si a morte que digere cada minuto sabendo-se jamais morrer.

 Jussara Paschoini
(Inspirada em Montaigne)

sábado, 24 de agosto de 2013

A VALIDADE DA LEI E O INDIVIDUALISMO DE MASSA



É com fadiga acadêmica que pretendo abandonar de ímpeto as noções naturalistas e positivistas do direito no prolongado de discussões registradas, reiteradas, contrabalançadas à saciedade na ciência jurídica, para fazer uma constatação: A qualidade intrínseca da lei como ideal vem cedendo cada vez mais espaço ao pior dos individualismos, o individualismo de massa. Gente unida e poderosa na prisão.

É claro, lei não é fato, lei se aplica aos fatos, donde divisa da realidade como ideal imposto a título de esquematizar a realização do bem comum mediante sujeição de garantia por interpretação e força legítima.

Ciência de efeitos associados a causas no que estas variam de acordo com os fatos, o direito se eleva à condição superior mais perene, a não ser que se invalide pelo desuso ou pela inconveniência refletida de sua aplicação ou mesmo pela preponderância de outro ideal por concepção  de maior relevância.

Para proteger o ato e a vontade o direito existe em condição analítica e coercitiva refletindo a moral praticada em sociedade no que idealiza ser o seu mais alto padrão de comportamento pela preservação de diferenças individuais, segundo o que se possa interpretar dentro de parciais e imparciais critérios de necessidade e  interesse.

Uma visão anárquica aboliria existência da lei em prol da liberdade individual irrestrita, supondo uma qualidade voluntária e humanística adequada a melhor extirpar contradições entre os seres humanos naturalmente gregários e mais, dependentes da ordem social para progredir nessa condição. É possível pensar nisso como um grau evolutivo a ser almejado diante de uma civilização abundante na oferta de interesses culturais e equilibrada no consumo das necessidades.  

Entretanto a civilização ao que tudo consta é cotejo árduo, impossível e impraticável sem os entraves esquemáticos e interpretativos, em verdade, caminhos traçados e sugeridos pela assimilação histórica de mesclas místicas e éticas como causa transcendente da condição humana coletiva, o que inclui a ciência jurídica voltada ao efeito equitativo, a arte do bom e do justo desde a antiguidade, desde a definição de Celso.

A impressão individual decorrente das facilidades promovidas pelo progresso adequou meios poderosos de dirigir e garantir movimentos e intenções generalizadas principalmente pela ordem de consumo típica da economia liberal, de tal sorte que fez nascer um senso de autossuficiência ilusório e ao mesmo tempo público o bastante para se estabelecer e criar raízes preconceituosas no balizar de condutas e consensos pautados por clamores fóbicos, efêmeros e fugazes que vêm desgostosamente impregnando a prática exegética.

A reverência à lei se tornou uma opção de concurso, uma escolha automática e disseminada de muitas altercações desprovidas de sentido, traduzida pela máxima de que: “cada caso é um caso” e como reflexão da generalidade preconceituosa, todo caso é um preconceito sobreposto à lei ao bel prazer de fértil mobilidade interpretativa tida como libertária enquanto retira racionalidade ideal da norma. Isso quando não simplesmente a desconsidera, por egocêntrica suposição fática individualista porém suficientemente massificada para galgar a condição de emanação popular suprema e cabal.

A revolta popular “sumulada” superlotou o terreno da litigância e a boa fé é vitimismo presumido entre categorias mais ou menos tachadas pela condição econômica capaz de produzir maior ou menor resultado monetário e cada caso é um caso, cada breu dramático e humorístico onde a legislação é tapete vermelho pisoteado no desfile de intérpretes gladiadores da engenhoca insaciável de insatisfação coletiva.

Qualquer litígio televisado tem destino garantido, qualquer lei proibitiva eterniza um pacifismo teórico cuja validade se esteia na preconcepção fática e não em efetivos modos de realização no mundo social, qualquer fraqueza é motivo e qualquer fortaleza é solução, dinheiro e não conteúdo medeia a equidade e a luta de classes de causa mal resolvida virou efeito fácil para conveniência mesmo que potencial do capital envolvido, sensibilidade vendida a granel, para alguns de baciada e para outros em conta-gotas. Realidade sim, Justiça jamais!


Jussara Paschoini




segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A SÍNDROME DO AMOR PENSADO


Down em inglês significa para baixo, sinônimo de depressão e num texto com esse título, logo é possível imaginar uma fossa daquelas dignas de bebedeira com urubus sendo chamados de meus louros e outros augúrios do amor obsessivo.

Entretanto é a frase de Reuven Feuerstein quem define a tônica importante ao assunto: “Cognição e afeto são faces da mesma moeda transparente”.

Portanto, pouco se tratará do registro histórico do médico britânico John Langdon Down e a descrição da síndrome a qual este nomeia por haver lhe descrito cientificamente os sintomas em meados do século XIX, ressaltando-se para a causa respectiva a figura de Jérôme Lejeune, pediatra francês responsável pela descoberta da anomalia cromossômica, a trissomia 21, em 1.958, quase um século adiante.


  




















                                                             O autor da frase destacada teve um netinho portador da síndrome e partindo da difícil escolha entre aceitar ou não aceitar o ser com necessidades especiais, optou por aceitar o ser e modificar a noção acerca de suas necessidades, no particular aspecto do natural retardo cognitivo.

   À parte anomalias típicas da doença progeróide, envolventes de uma incidência de 40% de defeitos cardíacos, 12% de refluxo gastroesofágico e 50% de chances de ter filhos com a mesma doença, além de hipotireoidismo, alterações de ordem imunológica e possíveis neoplasias, interessa saber que a intervenção fisioterápica precoce desde os primeiros meses de idade atua quase definitivamente quanto ao déficit motor.  No Brasil uma em cada setecentas crianças tem a síndrome.

A expectativa de vida que em 1.989 era de cinquenta anos para o portador da Síndrome de Down, subiu para entre sessenta e setenta anos, circunstância demonstrativa do grande acerto científico que acolhe e trata a doença, principalmente junto a quem possui acesso facilitado pela ascendência socioeconômica.

Feuerstein acabou por alcançar o intento de levar o netinho a frequentar uma escola junto de crianças normais e a exemplo de Maria Montessori dentro da sobressalente linha piagetiana de ensino, por conta de buscar incessante e persistentemente corrigir o que denominou de estrutura rígida de raciocínio, desmistificou a falha de desenvolvimento estigmatizada na necessidade especial decorrente do retardo mental.

A “necessidade” do ponto de vista do professor e psicólogo foi apontada como inoperância vinculada à privação cultural a redundar em falta de mobilização cognitiva, enquanto demanda social guiada a engatar a tendência autônoma de remodelar a realidade e promover a sua modificação estrutural mediante contato transformador, ou seja, adaptabilidade.

O instrumental desta necessidade foi instituído por Feuerstein como EAM (Experiência da Aprendizagem Mediada) com vistas então a flexibilizar a capacidade de mudança, inclusive pelo que acena como reversibilidade das operações parciais, ou seja, permitir o reiniciar das funções sequenciais que organizam a percepção da realidade para diferentes graus de interação espaço temporal.  

O professor e cuidador, no caso, converte-se no mediador da experiência cuja tradução está na coleta de dados de cognição, elaboração desses dados e resposta cuja eficácia é testada em quantidade e qualidade pela regulação daquele (o mediador) no atribuir de significados e valores a gerar interesse, novos estímulos com ampliação irresistível ao aluno.

O mediador das necessidades especiais deve seguir critérios universais e situacionais, os primeiros partem da intencionalidade clara e seletiva de conteúdo expressa para estímulo; da reciprocidade enquanto abertura de canal por parte do aluno seguindo para a transcendentalidade no fixar de princípios generalizáveis para futuras relações, isso enquanto fertilidade ao alcance do ciclo de mediação. Os critérios situacionais são variáveis conforme o contexto.

Ao mediar significados e valores a experiência agrega ao extrínseco dos aspectos sociais e afetivos novas necessidades de aprendizado o que somado a permissividade e otimismo tem ação humanística de crença no potencial transformador capaz de levar motivação e sentimento de pertença suficiente ao equilíbrio entre individualidade e coletividade, realização e respeito ao bem comum.

O destino da experiência da aprendizagem mediada é elevação cognitiva melhor e mais bem elaborada não apenas por amor a quem tem necessidades especiais, mas por quem tem comuns e normais necessidades de aprendizado, de expansão dos horizontes de modo a acolher e compartilhar renovado nível de cooperação rumo à verdadeira educação, ao ensino plural na formação da capacidade moral compatível com o grandioso passado e o imensurável futuro de múltiplas escolhas e possibilidades.

 Jussara Paschoini

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

ROCK’N ROLL E REPUGNÂNCIA




Chacoalhar para ver o que sai e como é que fica pode ser uma atitude, uma característica atribuída a alguns gênios e até um padrão de sucesso. Não é Rock’n Roll é repugnante.

O lamento em cordas e o som amplificado eletronicamente com batidas marcadas e vozes com específica tonalidade lacerante tanto em timbres graves como agudos, em baixo ou alto volume rasgam o continente das repressões harmonizando efeitos antagonistas de peso à uma realidade imponente e nem por isso pouco temerária. Rock é rebeldia organizada cheia de consequências e impressões individuais para repercussões coletivas.

Chacoalhar é mera infantilidade, criança chorando no berço tentando chamar atenção e não tem a ver com inquietude ou nada de espiritual, é manha e birrinha, chororô insuportável. Impulso forçado, poesia roubada para a transferência de tédio.

Para alguns o Rock’n Roll não tem o apelo louvável das elaborações clássicas, porém é errado confundir a diferença reinante na distinção de gostos com aquela repugnante e peculiar de quem chacoalha para ver o que sai e consegue pegar no tranco, chamando isso de sucesso ou pior, de benção polar extremada dos entes morais agentes do acaso.

O repugnante fabrica crises sem nexo, destituídas de qualquer emoção por puro exibicionismo e consegue tirar vantagem disso, tornando-se uma espécie de motor velho, enguiçado, repetitivo e carente de forças alheias para sair do lugar num milagre fabricado, convertido em novidade moderna e revolucionária.

O mérito de tamanha repulsa é para quem não serve de exemplo, são os olhos de quem compreende a necessária manutenção de distância já que os portadores de chacoalho nada trazem além de muito barulho a favor do nada que tem a demonstrar.

Gênio combina impulsos que possui com inteligência, repugnantes não possuem impulso, trepidam qualquer coisa e chamam isso de criação, temperamento forte, pavio curto ou paixão enfeitada com muito gelo seco e qualquer porcaria alucinógena misturada com sexo e palavrões, estes sempre chamativos.

Portanto a quem não gosta de Rock, fica o lamento de não ser tomado pela mensagem ou tocado pelo conteúdo naturalmente muito presente, todavia, confundir Rock com pessoas e fatos repugnantes é equívoco dos grandes entre o eterno e o velho anabolizado fazendo gestos obscenos por entre cabelos arrepiados num aceno démodé.

Jussara Paschoini

    

domingo, 11 de agosto de 2013

O DESPREPARO DOS ADULTOS


Conquistar o seu lugar no mundo, algum status social, razoável segurança financeira é muito bom. Principalmente para quem já experimentou a desconsideração natural de ser desapropriado e assim viver sob dependência quando criança, já que desde aí a aptidão para o compromisso com as posses e a formação de uma espontaneidade sã e competente ao convívio em boa esfera individual e coletiva.

A criança ensaia a vida e se for zelada pelos pais, faz isso com autonomia guiada, o que significa não só liberdade, também oportunidade  para participar do mundo a sua volta com proteção, ou seja, quando aprende a andar é segurada nos primeiros passinhos e sai, depois cai e geralmente não chora, recebe auxílio para levantar e lá vai de novo um pouquinho e ao chão até um dia em que ensaia levantar sozinha e sai, cai de novo até que a caminhada começa a se estender entre um tombinho e outro e um belo dia não é mais preciso segurar os passinhos que vão se tornando cada vez mais firmes.

É pena que esse zelo genuíno muitas vezes vá aos poucos sendo substituído por uma inexata noção adulta de "preparo" e aqueles de quem a criança depende o abandonem em prol do tal intento premeditado, tendente a produzir mini adultos pseudo maduros porque premiados com proezas da superinteligência ou com a digestão conveniente de um avanço etário precoce, motivo de orgulho aos infantes obrigados assim a interromper os ensaios e assumir responsabilidades que não são suas ainda.

A infância é uma fase de excessiva importância senão a mais importante na formação de um indivíduo e o valor erroneamente aplicado à queima de etapas de supostos ou desejados superdotados é um equívoco visível e lamentável cuja notoriedade não vem no boletim e sim no tropeço das expectativas de quem deixa de ensaiar para o complexo espetáculo do viver.

Aplausos em diferentes graus não deixam de ser importantes sinais de amor, é na pressa que urge a falta de atenção tendente à queda desnecessária, ao pranto que não se esvai tão facilmente quanto poderia.

O fantástico da criança é a maior reverência de quem ama, um enorme e discreto respeito a cuja praticidade não serve.

Empréstimo compulsório consiste na intimidade dos filhos, dívida ao tesouro, paga sob a forma de amparo, presentes, carinho e donde a moratória eventualmente cabível sucede mais da sincera, honesta e destemida negociação amigável do que de imposições disciplinares deméritas, suspeitas e de difícil ou impossível compreensão.

Pobreza e carência são conceitos adultos sem os quais as crianças podem passar muito bem e  perceber com muito mais honradez do que a maioria dos pretensos maiores, desde que as lágrimas pequenas de desejos grandes não sofram ainda mais pelo menosprezo ou abuso de quem acredita se safar com isso.

Do respeito se conquista a disciplina, fundamental para quem zela e impraticável por exemplos mal elaborados e violentos de frustração intimidatória, típicos dos adultos despreparados e por isso mesmo excessivamente prevenidos.

Curar os machucados pede mais que mertiolate, gaze, esparadrapo ou band-aid rapidinho, mas conduzir esteios de forças auto compensatórias tanto no sentido evitável quanto inevitável da dor das quedas e para a recuperação rumo ao soerguimento pronto cada vez mais consciente de escolhas próprias e por isso válidas.  Chorar junto, só em ocasiões especiais desse caminhar.
 
Segredos e mistérios são dádivas partilhadas entre íntimos mantenedores de seus respectivos interesses na posse e guarda constante e recíproca destes, portanto em nada estão sujeitos à perfeição por serem plenos idólatras da mágica e da pureza venturosas.  

Preparado deve ser o adulto, a criança é quem dita a receita e fornece o pó de pirlimpimpim.

Eis a minha mensagem de filha única, cheia de pudor numa remissiva de quem não viveu a maternidade e não tem mais essa pretensão, mas cuidou e fez ninar muitas crianças de todos os tamanhos e origens antes mesmo de amadurecer e amadurecendo em face de anseios e necessidades mescladas com fascínio de reflexões jamais perdidas.

Boa paternidade e vida longa a quem sustenta essa suprema ousadia!

Jussara Paschoini

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

LAMENTAR: O SUFICIENTE DIANTE DO MAR E DO ABISMO


O lamento é o maior devedor de todos, o mau pagador de promessas, o doloroso, o desmancha prazeres e mais que tudo isso o fiel criado das coisas perfeitas, das estruturas acabadas e a sombra deslizante nas lágrimas de realização.

O que seria da vida sem o lamento? Tudo que sonhamos com juros e correção monetária.

Sim, lamentar é coisa de vitoriosos, dos que correm atrás do que acreditam e nunca estão satisfeitos porque subjugados estão ao delírio de antecipar os fatos em pérolas da verdade aos porcos reais, aos culpados sempre culpados, para que andem em linha reta pela estrada conducente na confiança de jamais chegar lá.

A cama é o lar do lamento, o descanso dos justos, o gozo na medida exata e indelével.

O lamento passa pelo sofrimento diariamente e grita aos ventos sua condição sem poder, pretérita e imperfeita como eterno desgraçado que é.

Insurreição é o limite do lamento e não passa daí porque senão deixa de ser humilde como manda sua natureza perdedora.

O entalo na voz cantante diante de uma plateia surda é precisão em definir o lamento.

Camões e Fernando Pessoa ou então os ilustres amantes da navegação e de outros perigos, fingem não lamentar, mas lamentam porque navegar é preciso, embora para um defunto seja praticamente impossível.

Errar não é humano, lamentar sim...



Jussara Paschoini