Dívida é uma resposta para o caminho entre o suicídio e a eutanásia e dúvida é outra. A morte conveniente e
a morte por justa opção. Destarte, há que se distinguir entre Naldo
Prechetis que num dado momento da vida cansou de brigar com o sistema depois de
ter falido com um estacionamento e um lava-rápido, grandes ideias que afundaram
até hoje sem explicação e Beanto Velado Buarcótes, intelectual renomado, autor
de dezoito novelas de considerável sucesso, diagnosticado com Lúpus Eritematoso Sistêmico de
grau agressivo e classificação grave.
Naldo Prechetis
perdeu seus melhores amigos numa discussão de bar, amargando arrependimento por
tê-los transformado em sócios. E nunca mais desde então, participou dos
churrascos dominicais na chácara da esposa de um deles, a qual manteve o imóvel
longe das execuções civis e fiscais porque se encontrava a tal edificação em nome da associação
beneficente “Idade de Ouro” de titularidade dos bisavôs da mesma.
Beanto Velado
Buarcótes, depois de oito casamentos, nove filhos, dois do primeiro e os sete outros de cada um dos sequentes, gastava muito do que tinha com pensões e
estava cansado e muito desanimado com sua última esposa, uma lindíssima e
escultural mulata, trinta anos mais jovem que ele, sobre quem não sabia
explicar porque razão, só havia interesse pelo seu dinheiro e naturalmente por seus dotes culturais maduros e elevados, é claro. O diagnóstico da
doença começou com reações alérgicas nas regiões atingidas pelo sol, nas marcas
da camisa e muita dor nas articulações, tudo evoluindo progressiva e incessantemente
para grandes feridas cutâneas e dores ósseas cada vez maiores. Só após muitos exames consecutivos
e incapazes de impedir o início de horríveis dores internas em face de lesões
produzidas por reações autoimunes múltiplas é que uma biópsia de pele revelou
a moléstia.
Iniciados os
tratamentos conhecidos, Beanto apresentava melhoras as quais não progrediam satisfatoriamente e o prognóstico acerca de efeitos indesejáveis além de indeterminados que lhe foi fornecido era de que com controle
adequado, analgesia, boa alimentação e uma vida regrada, poderia ter uma sobrevida quase
normal por um bom tempo, devendo ficar taxativamente longe de qualquer exposição solar
superior a dez minutos. Nada, todavia, evitava o constante pruído em suas
partes íntimas, circunstância cabal do pouco restante de sua vida sexual com a indiferente e
monumental esposa "interesseira".
Naldo de sua vez foi
abandonado pela dele que levou consigo os três filhos do casal após o
cancelamento do cartão de crédito e por haver descoberto seu caso com a última
secretária e recepcionista do lava-rápido, pessoa a quem mais adiante definiu como uma prostituta
salva por ele da lama, ingrata e regressa ao interior da Bahia, depois da
derrocada do negócio.
Solitário,
depois de receber citação judicial para pagar pensão aos filhos sob pena de prisão, Naldo
procurava emprego como administrador de empresas e tinha o consolo de estar
namorando Diana, Julia e Cláudia, alegando-se gestor de recursos humanos de uma
grande empresa que o obrigava a viajar frequentemente para promover gestão de
qualificação de pessoal e treinamento em diversos estados do país, além de ter
de visitar os filhos e cuidar para que não partissem para a droga depois de um
divórcio conturbado com a ex. Isso se prestava perfeitamente a eventualidade e alternância dos relacionamentos impregnados de falsidade.
E aquele
moleque esquálido e pardo distribuía anúncios coloridos em papel reciclado
informando dia, local e horário da palestra do Dr. Horácio Genro Barbosa,
ex-estudante de medicina, ex-estudante de engenharia, bacharel formado em
direito e atual pretenso de passar no concurso para Juiz. Título da Palestra gratuita:
“Aspectos práticos do fim da vida em matéria de bioética e lei”.
Assim, o acaso
colocou aquelas letras convidativas nas mãos de Naldo e Beanto enquanto
caminhavam pelas ruas do centro da cidade, desviando dos pombos famintos e de
seus excrementos verde acinzentados. Para as dezenove horas se identificava o evento, no auditório
Marechal Deodoro da Fonseca, da Faculdade de Ciências e Artes em Geral, próxima
ao Viaduto. Então, com as pernas e bundas que lhes restavam, iriam sondar essa
possibilidade em seus destinos, ao que tudo indicava deveras difíceis.
Dr. Horácio tinha
uma voz grave e pungente , dispensava microfone e amplificadores, intencionava promover a elaboração pormenorizada de testamentos vitais afirmando a
possibilidade de as pessoas adequarem documentalmente, desde cedo e antes que fosse tarde,
disposições de vontade sobre a própria morte, evitando o uso indiscriminado de
expedientes proteladores da fatalidade, de acordo com as tendências
legislativas e jurisprudenciais aparentemente caminhantes da ortotanásia.
O auditório
tinha um odor de mofo com multiuso em spray e cadeiras interligadas com mesinhas de apoio
dobrável ao invés de confortáveis poltronas de cinema para desconforto inquieto de quem
tinha de enfrentar duas horas mantendo interesse numa falação daquelas, sobre
um assunto tão delicado. E no horário estipulado, lá já se encontrava ereto e empertigado
o Dr. Horácio com cinco exemplares do livro “Vidas Secas” de Graciliano Ramos
para sorteio animador, no final da palestra graciosa.
Doze pessoas ao
todo chegaram no horário, Naldo e Beanto, quinze minutos após o início,
sentaram para ouvir a seguinte frase: “Não existe livre arbítrio”, o que fez
com que ambos se entreolhassem num misto de dúvida, espanto e vontade de cair
fora.
Dr. Horácio em
um tom sério prosseguiu informando que não era a escolha do assassino que o
levava a matar e sim o conjunto de possibilidades disponíveis, entre elas a mortalidade
humana e o incômodo real ou fictício diante de alguma
revolta ou desejo insatisfeito somado a instrumentais compatíveis e circunstâncias
presenciais e de forças físicas e psicoemocionais cuja temperatura era impossível de se
estabelecer, bem como tantos outros fatores propícios para a execução mortal. A
escolha era mero detalhe donde concluía a inexistência reduzida à insignificância
desse princípio arbitrário e liberatório de vontades.
Beanto, irritado
com a comum coceira impregnada em suas partes baixas, logo ergueu um dos braços
e o dedo indicador em haste para argumentar que o pequeno e insignificante
detalhe de vontade fazia toda a diferença, ao que o Dr. Horácio prontamente
respondeu: “Certo, não fosse a ativação do possível desequilíbrio reativo do
sistema nervoso parassimpático com relação ao sistema nervoso simpático a
determinar detalhes inconscientes de comportamento.”.
Naldo, enquanto
se esticava para olhar as pernas cruzadas de uma das integrantes da plateia,
quis logo chamar atenção quanto a sua posição e aparência inteligente por trás
das lentes de contato e dos óculos de armação com reprodução azul do esquema “couro
de jacaré”, indagando o que isso tinha a ver com a possibilidade de dar fim à
própria vida, afinal?
Depois de um
silêncio longo suficiente a fazer com que Beanto coçasse irresistível e disfarçadamente
os testículos, Dr. Horácio a título da doutrina que estudara e cultivara no que
entendia ser sua ciência, respondeu com outra pergunta: “Porque alguém tiraria
a própria vida”?
Naldo pensou na
sua solidão e nas mulheres com quem dividira a cama e em outros tantos desejos,
nos amigos que não via mais, nos filhos de quem tinha vergonha, nas contas para
pagar e nas cartas e notificações de cobrança, no seu descrédito, na sua
condição de homem e no quanto macho precisava ser para dar um tiro na própria
cabeça e olhando de soslaio, diferentemente respondeu: “Por estar com câncer incurável, por exemplo”.
Satisfeito, Dr.
Horácio pegou da palavra e disse: “Câncer não é vontade, cura também não é”. E
a mocinha descruzou as pernas, para soltar displicentemente que: “Ora! A fé
remove montanhas”!
Ignorando propositalmente o
comentário, Dr. Horácio concluiu que "a vontade é consequência das causas e
nessa definição seu valor pode e deve ser predeterminado para fluir efeitos
sempre que possível. Portanto morrer ou matar, como ato de vontade, além de
estar vinculado a um motivo de valor moral e mais que isso, juridicamente relevante, precisa ser arte de uma
vontade que se possa elaborar conforme permissão legal.".
Beanto
suplicou: “E o amor? E a vida? E a família? E a boa fé”?
Dr. Horácio
replicou: “Nada disso é livre arbítrio, muito menos para morrer.”.
Ninguém mais quis
falar sobre liberdade ou escolha, um silêncio forçado e não reflexivo travou o debate e
Dr. Horácio teve plenas chances de persistir sossegado em desvendar todas as vantagens
de se fazer um testamento vital impedindo assim o transtorno de ficar por
longos anos respirando artificialmente por aparelhos, com nutrição parenteral e
fraldas denominadas geriátricas, além da sujeição a administração das mais
diversas drogas aplicadas com a finalidade de estabilizar os estados de inércia corporal além das
possíveis dores consequentes, conforme preconizam manter os doutrinadores, ou doutores adeptos da paliação e eteceteras conservadoras.
Sorteados com
seus respectivos exemplares de “Vidas Secas” Naldo e Beanto saíram desanimados
da palestra e tácita, porém, conjuntamente se dirigiram ao bar mais próximo
para beber cerveja muito gelada como precisavam no que obviamente exerceram o
arbítrio de expor um ao outro suas mazelas existenciais e o quanto estavam
cansados de tudo e todo dia só pensavam em poder parar e dizer não e todas as proparoxítonas
dessa construção típica dos novos tempos. Passaram para caipirinha, vodca pura,
whisky, rabos de galo e tudo mais que o boteco disponibilizava com tremoço para
acompanhar naquela esquina.
Dois exemplares
de Graciliano Ramos restaram na mesa de um bar na Avenida Santo Antônio. E num
beco pouco iluminado pelo sol, pela manhã do dia seguinte, os “dois perdidos
numa noite suja”, de fato, foram encontrados sem vida ao lado das três caixas
de ansiolítico receitadas pelo psiquiatra e amigo de e para Beanto, Dr. Prado, quem
muito lamentou quando ficou sabendo só depois.
Ambos
foram enterrados. Um no Cemitério do Caxambu e o outro no da Vila Altina, sem mais.
(Embora fictícia essa estória teve alguns nomes dos personagens e outras identidades modificadas
para evitar conflitos de toda a ordem)
Jussara Paschoini
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