segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O QUE HÁ ENTRE O SUICÍDIO E A EUTANÁSIA




Dívida é uma resposta para o caminho entre o suicídio e a eutanásia e dúvida é outra. A morte conveniente e a morte por justa opção. Destarte, há que se distinguir entre  Naldo Prechetis que num dado momento da vida cansou de brigar com o sistema depois de ter falido com um estacionamento e um lava-rápido, grandes ideias que afundaram até hoje sem explicação e Beanto Velado Buarcótes, intelectual renomado, autor de dezoito novelas de considerável sucesso, diagnosticado com Lúpus Eritematoso Sistêmico de grau agressivo e classificação grave.

Naldo Prechetis perdeu seus melhores amigos numa discussão de bar, amargando arrependimento por tê-los transformado em sócios. E nunca mais desde então,  participou dos churrascos dominicais na chácara da esposa de um deles, a qual manteve o imóvel longe das execuções civis e fiscais porque se encontrava a tal edificação em nome da associação beneficente “Idade de Ouro” de titularidade dos bisavôs da mesma.

Beanto Velado Buarcótes, depois de oito casamentos, nove filhos, dois do primeiro e os sete outros de cada um dos sequentes, gastava muito do que tinha com pensões e estava cansado e muito desanimado com sua última esposa, uma lindíssima e escultural mulata, trinta anos mais jovem que ele, sobre quem não sabia explicar porque razão, só havia interesse pelo seu dinheiro e naturalmente por seus dotes culturais maduros e elevados, é claro. O diagnóstico da doença começou com reações alérgicas nas regiões atingidas pelo sol, nas marcas da camisa e muita dor nas articulações, tudo evoluindo progressiva e incessantemente para grandes feridas cutâneas e dores ósseas cada vez maiores. Só após muitos exames consecutivos e incapazes de impedir o início de horríveis dores internas em face de lesões produzidas por reações autoimunes múltiplas é que uma biópsia de pele revelou a moléstia.

Iniciados os tratamentos conhecidos, Beanto apresentava melhoras as quais não progrediam satisfatoriamente e o prognóstico acerca de efeitos indesejáveis além de indeterminados que lhe foi fornecido era de que com controle adequado, analgesia, boa alimentação e uma vida regrada, poderia ter uma sobrevida quase normal por um bom tempo, devendo ficar taxativamente longe de qualquer exposição solar superior a dez minutos. Nada, todavia, evitava o constante pruído em suas partes íntimas,  circunstância cabal do pouco restante de sua vida sexual com a indiferente e monumental esposa "interesseira".

Naldo de sua vez foi abandonado pela dele que levou consigo os três filhos do casal após o cancelamento do cartão de crédito e por haver descoberto seu caso com a última secretária e recepcionista do lava-rápido, pessoa a quem mais adiante definiu como uma prostituta salva por ele da lama,  ingrata e regressa ao interior da Bahia, depois da derrocada do negócio.

Solitário, depois de receber citação judicial para pagar pensão aos filhos sob pena de prisão, Naldo procurava emprego como administrador de empresas e tinha o consolo de estar namorando Diana, Julia e Cláudia, alegando-se gestor de recursos humanos de uma grande empresa que o obrigava a viajar frequentemente para promover gestão de qualificação de pessoal e treinamento em diversos estados do país, além de ter de visitar os filhos e cuidar para que não partissem para a droga depois de um divórcio conturbado com a ex. Isso se prestava perfeitamente a eventualidade e alternância dos relacionamentos impregnados de falsidade.

E aquele moleque esquálido e pardo distribuía anúncios coloridos em papel reciclado informando dia, local e horário da palestra do Dr. Horácio Genro Barbosa, ex-estudante de medicina, ex-estudante de engenharia, bacharel formado em direito e atual pretenso de passar no concurso para Juiz. Título da Palestra gratuita: “Aspectos práticos do fim da vida em matéria de bioética e lei”.

Assim, o acaso colocou aquelas letras convidativas nas mãos de Naldo e Beanto enquanto caminhavam pelas ruas do centro da cidade, desviando dos pombos famintos e de seus excrementos verde acinzentados. Para as dezenove horas se identificava o evento, no auditório Marechal Deodoro da Fonseca, da Faculdade de Ciências e Artes em Geral, próxima ao Viaduto. Então, com as pernas e bundas que lhes restavam, iriam sondar essa possibilidade em seus destinos, ao que tudo indicava deveras difíceis.

Dr. Horácio tinha uma voz grave e pungente , dispensava microfone e amplificadores, intencionava promover a elaboração pormenorizada de testamentos vitais afirmando a possibilidade de as pessoas adequarem documentalmente, desde cedo e antes que fosse tarde, disposições de vontade sobre a própria morte, evitando o uso indiscriminado de expedientes proteladores da fatalidade, de acordo com as tendências legislativas e jurisprudenciais aparentemente caminhantes da ortotanásia.

O auditório tinha um odor de mofo com multiuso em spray e cadeiras interligadas com mesinhas de apoio dobrável ao invés de confortáveis poltronas de cinema para desconforto inquieto de quem tinha de enfrentar duas horas mantendo interesse numa falação daquelas, sobre um assunto tão delicado. E no horário estipulado, lá já se encontrava ereto e empertigado o Dr. Horácio com cinco exemplares do livro “Vidas Secas” de Graciliano Ramos para sorteio animador, no final da palestra graciosa.

Doze pessoas ao todo chegaram no horário, Naldo e Beanto, quinze minutos após o início, sentaram para ouvir a seguinte frase: “Não existe livre arbítrio”, o que fez com que ambos se entreolhassem num misto de dúvida, espanto e vontade de cair fora.

Dr. Horácio em um tom sério prosseguiu informando que não era a escolha do assassino que o levava a matar e sim o conjunto de possibilidades disponíveis, entre elas a mortalidade humana e o incômodo real ou fictício  diante de alguma revolta ou desejo insatisfeito somado a instrumentais compatíveis e circunstâncias presenciais e de forças físicas e psicoemocionais cuja temperatura era impossível de se estabelecer, bem como tantos outros fatores propícios para a execução mortal. A escolha era mero detalhe donde concluía a inexistência reduzida à insignificância desse princípio arbitrário e liberatório de vontades.

Beanto, irritado com a comum coceira impregnada em suas partes baixas, logo ergueu um dos braços e o dedo indicador em haste para argumentar que o pequeno e insignificante detalhe de vontade fazia toda a diferença, ao que o Dr. Horácio prontamente respondeu: “Certo, não fosse a ativação do possível desequilíbrio reativo do sistema nervoso parassimpático com relação ao sistema nervoso simpático a determinar detalhes inconscientes de comportamento.”.

Naldo, enquanto se esticava para olhar as pernas cruzadas de uma das integrantes da plateia, quis logo chamar atenção quanto a sua posição e aparência inteligente por trás das lentes de contato e dos óculos de armação com reprodução azul do esquema “couro de jacaré”, indagando o que isso tinha a ver com a possibilidade de dar fim à própria vida, afinal?

Depois de um silêncio longo suficiente a fazer com que Beanto coçasse irresistível e disfarçadamente os testículos, Dr. Horácio a título da doutrina que estudara e cultivara no que entendia ser sua ciência, respondeu com outra pergunta: “Porque alguém tiraria a própria vida”?

Naldo pensou na sua solidão e nas mulheres com quem dividira a cama e em outros tantos desejos, nos amigos que não via mais, nos filhos de quem tinha vergonha, nas contas para pagar e nas cartas e notificações de cobrança, no seu descrédito, na sua condição de homem e no quanto macho precisava ser para dar um tiro na própria cabeça e olhando de soslaio, diferentemente respondeu: “Por estar com câncer incurável, por exemplo”.  

Satisfeito, Dr. Horácio pegou da palavra e disse: “Câncer não é vontade, cura também não é”. E a mocinha descruzou as pernas, para soltar displicentemente que: “Ora! A fé remove montanhas”!

Ignorando propositalmente o comentário, Dr. Horácio concluiu que "a vontade é consequência das causas e nessa definição seu valor pode e deve ser predeterminado para fluir efeitos sempre que possível. Portanto morrer ou matar, como ato de vontade, além de estar vinculado a um motivo de valor moral e mais que isso, juridicamente relevante, precisa ser arte de uma vontade que se possa elaborar conforme permissão legal.".   

Beanto suplicou: “E o amor? E a vida? E a família? E a boa fé”?

Dr. Horácio replicou: “Nada disso é livre arbítrio, muito menos para morrer.”.

Ninguém mais quis falar sobre liberdade ou escolha, um silêncio forçado e não reflexivo travou o debate e Dr. Horácio teve plenas chances de persistir sossegado em desvendar todas as vantagens de se fazer um testamento vital impedindo assim o transtorno de ficar por longos anos respirando artificialmente por aparelhos, com nutrição parenteral e fraldas denominadas geriátricas, além da sujeição a administração das mais diversas drogas aplicadas com a finalidade de estabilizar os estados de inércia corporal além das possíveis dores consequentes, conforme preconizam manter os doutrinadores, ou doutores adeptos da paliação e eteceteras conservadoras.

Sorteados com seus respectivos exemplares de “Vidas Secas” Naldo e Beanto saíram desanimados da palestra e tácita, porém, conjuntamente se dirigiram ao bar mais próximo para beber cerveja muito gelada como precisavam no que obviamente exerceram o arbítrio de expor um ao outro suas mazelas existenciais e o quanto estavam cansados de tudo e todo dia só pensavam em poder parar e dizer não e todas as proparoxítonas dessa construção típica dos novos tempos. Passaram para caipirinha, vodca pura, whisky, rabos de galo e tudo mais que o boteco disponibilizava com tremoço para acompanhar naquela esquina.

Dois exemplares de Graciliano Ramos restaram na mesa de um bar na Avenida Santo Antônio. E num beco pouco iluminado pelo sol, pela manhã do dia seguinte, os “dois perdidos numa noite suja”, de fato, foram encontrados sem vida ao lado das três caixas de ansiolítico receitadas pelo psiquiatra e amigo de e para Beanto, Dr. Prado, quem muito lamentou quando ficou sabendo só depois.

Ambos foram enterrados. Um no Cemitério do Caxambu e o outro no da Vila Altina, sem mais.

(Embora fictícia essa estória teve alguns nomes dos personagens e outras identidades modificadas para evitar conflitos de toda a ordem)

Jussara Paschoini


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